23 março 2007

Só evoluímos sem saudade mas com ternura

Ponte de Lima está de bem com o seu passado? Aparentemente todos estamos de bem. Mesmo se quem mais se revolta com a sua condição não deixa de valorizar o que o rodeia.
Passamos ao lado de tudo, da velha revolução industrial, do trabalho manufactureiro, da proletarização. Temos muita dificuldade em pensar sequer em termos que nos são estranhos na vivência e mais aversão nos causam no pensamento.
Sentimos afinidades emotivas mas não compreendemos os raciocínios e conclusões de quem sempre viveu de forma diferente. Devido àquela afinidade se dizia, no tempo de Salazar, que estávamos prontos para o comunismo, mas aconteceu que para o compreendemos nos falta a frieza dum qualquer ditador.
Hoje, aliás, ninguém já compreende o comunismo, ninguém o consegue encaixar na natureza humana. Em Ponte de Lima, não alheados, mas sim descomprometidos com as realidades que nos transcendem, continuamos a viver no bucolismo, na contemplação, no suave remanso.
Enfim o mundo começou a meter-se connosco. Tardiamente buscamos um trabalho diferente do habitual. O homem emigrou, percorreu mundo O mundo trouxe-nos confecções e sapataria. Já não é só o homem que se despega das raízes milenares, a mulher também.
Mas o passado está sempre lá para não nos deixar perdidos no universo. Regressamos e vemos tudo como era, semelhante, poético, deslumbrante, mas já nem tudo é igual. A coluna já não está habituada à enxada, o apelo já se não satisfaz com uma vida ao sabor do tempo universal.
Os homens já criaram outros tempos, outros ritmos, reinventaram novas alegrias para conseguirem estar vivos. Não podemos ficar sempre à espera do eterno retorno. Temos de nos despegar enfim e partir. Como sempre, os que cá ficam providenciarão por nós.
Na nossa mente conservar-se-ão os velhos caminhos, as lindas quintas com seus altos muros, os frondosos bosques, os campos multicolores, as vacas pachorrentas, as rebeldes cabras. Tudo aquilo que nos recusamos a entregar mesmo perante a voragem do progresso.
Mas quando regressarmos talvez vejamos tudo devorado pelo fogo regenerador. Ou as tenebrosas labaredas, que a tão necessária biomassa consomem, já se terão transformado em novos tufos num outro ordenamento.
A parte que levamos, a que nos consome com a saudade, é a parte que, na nossa ilusão de eternidade, mesmo assim não vamos entregar. É isto que nos separa, não das gerações que nos seguiram, mas daquela que estará hoje no berço, mais desprendida que ela será.
Só talvez essa possa vir a viver com ternura o que é de viver com ternura, a recordação de uma vida difícil, mas poética, em que a saudade estará arredada, para poder percorrer livremente os novos caminhos do futuro.

Sem comentários:

Aqui pode vir a falar-se de tudo. Renegam-se trivialidades, mas tudo depende da abordagem. Que se não repise o que está por de mais mastigado pelo pensamento redondo dominante. Que se abram perspectivas é o desejo. Que se sustentem pensamentos inovadores. Em Ponte de Lima, como em todo o universo humano, nada nos pode ser estranho.

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"Big Man" 1998 (1,83 de altura) - Obra de Mueck

"Big Man" 1998 (1,83 de altura) - Obra de Mueck
O mais perfeito retrato da solidão humana