11 novembro 2008

Momentos da Crise (31)

Todos somos capazes de lidar com o futuro mais ou menos próximo, daquele que construímos com a ajuda dos outros e com a nossa participação activa. Já o mesmo se não passa à medida que esse futuro vai ficando cada vez mais longínquo.
O nosso actual sistema de pensões assenta na contribuição daqueles que estão hoje a trabalhar para pagar àqueles que já deixaram de o fazer. O aumento da esperança de vida, o aumento do custo de manutenção de uma forma saudável nesta etapa “suplementar” da vida, tem levantado o problema da sustentabilidade futura do sistema.
A alternativa apresentada é a criação de um fundo de pensões cujo rendimento garantiria as reformas dos seus depositantes. Cada qual pagaria para si somente, deixaria de pagar para os outros, actuais e futuros. As actuais pensões de reforma, e no futuro um seu valor mínimo, seriam garantidos pelo Estado através da cobrança de uma qualquer contribuição ou imposto.
A tal reforma pessoal futura seria garantida pelo rendimento proporcionado pela gestão de um fundo próprio das contribuições pessoais actuais para o novo sistema. O que a actual crise veio provar é que tais fundos não dão a garantia de qualquer rendimento, antes pelo contrário, não conseguem acompanhar sequer a rentabilidade média dos depósitos a prazo.
Um fundo de pensões é dos elementos mais frágeis do sistema financeiro. Não sendo normal vender o seu património, o que só seria vantajoso se fosse possível prever a evolução do seu valor, tem que viver utilizando os dividendos para pagar as pensões a que se comprometeu.
Ora os dividendos não tem qualquer relevância nesta economia financeira, tal qual hoje a conhecemos. Só uma pequena parte da rentabilidade das empresas vai para dividendos, porque o reinvestimento, a manutenção da máquina gestora levam a parte de leão. Por outro lado o valor das empresas traduzido pelo valor das suas acções é de uma volatilidade incompreensível. A estes fundos nem a venda do património os salva.

10 novembro 2008

Momentos da Crise (30)

Esta crise é demonstrativa da vitória absoluta e definitiva do dinheiro, como símbolo da riqueza não necessariamente utilitária nem sumptuária. O único valor sólido no sistema é aquilo que noutras épocas seria mais vulnerável a uma crise, quase diríamos a uma moda, a um capricho.
Tempos houve que se dizia que a moeda era falsa ou má e ninguém acreditava nela pelo que o preço dos outros bens inflacionava para atender ao risco do uso de tal dinheiro. Noutras ocasiões não haveria dinheiro e quanto maior fosse a produção de bens maior a dificuldade no seu escoamento, o que levaria à depreciação dos preços e à mudança de uma produção competitiva para uma produção selectiva.
Hoje há dinheiro, entenda-se valor escriturado ou em moeda, dentro ou fora do sistema financeiro, líquido para poder servir para troca ou empréstimo e que se mantém sólido enquanto o mesmo não acontece com os bens que alguém possa receber em sua troca. É a procura do dinheiro, mais do que a procura de qualquer um dos outros bens que determina os preços destes bens e a fluidez da actividade económica.
A determinação do preço do dinheiro, do juro pago pelo seu empréstimo, é uma função do Estado que lhe permite intervir em termos indicativos e assim manter a estabilidade do dinheiro. Só que a voracidade com que se engoliram etapas, a velocidade a que se conseguiu progredir e de certo modo antecipar o futuro, criaram a veleidade de pensar que seria possível antecipar esse futuro ainda mais.
O que ficou por determinar é o preço a pagar por isso, o juro que haveria que ser pago, a base em que deveria assentar. Numa realidade em permanente mutação optou-se por antecipar o futuro, aplicando o preço de hoje e o custo hoje dispendido, isto é, o juro que seria hoje pago. Por isso a fixação das taxas indexantes mutáveis e a cristalização em dados momentos dum futuro imprevisível.

09 novembro 2008

Momentos da Crise (29)

Sempre se deu consistência à ideia de que onde estivesse o dinheiro estava o poder. A Banca era assim o símbolo do poder. Banca e dinheiro seriam sinónimos pelo que a Banca seria toda-poderosa, inatacável, inabalável. Neste sentido todos os que não rejeitam a economia de mercado, embora não morram de amores por ela, fazem todos os esforços para se não deixarem dominar pelos senhores do dinheiro. A presente crise tem desmentido esse poder e este temor.
Um primeiro princípio da democracia é que o poder político não seja dependente do poder económico. No entanto nesta crise é o poder económico que necessita de se libertar de uma certa força passiva que o manieta, que não é ele que gera, que lhe é exterior e que no fundo é o sinal da soberania do Estado e da força do poder político, o dinheiro.
Que o dinheiro seja utilizado na execução da sua dupla função de moeda de troca e de reserva de investimento é uma responsabilidade do Estado. Qualquer grande bloqueio que ocorra e não permita a fluidez do comércio e o financiamento dos empréstimos necessários à actividade económica pode reproduzir-se em cadeia e dar numa crise.
Mas uma crise sistémica pressupõe que ocorram problemas a nível global e que a resolução de cada um por si não implique a resolução de todos. Torna-se imperiosa uma intervenção do Estado, dos Estados para que o próprio sistema sofra as alterações adequadas que tornem o dinheiro uma força activa. O Estado não pode delegar em ninguém o poder que o dinheiro constitui, não se pode desculpar com o seu mau uso.

08 novembro 2008

Momentos da Crise (28)

Quando a crise se instala num espaço económico em que prevalece a racionalidade financeira são os outros bens que se depreciam de modo a facilitar a sua trocas e a obter mais rentabilidade para o dinheiro. Na verdade o valor relativo desses bens só alterará se os respectivos sectores entrarem simultaneamente em crise. O dinheiro em si não desvalorizará, mas também entra em crise de carência quando se retrai, se entesoura, quando espera pela melhor oportunidade de aplicação.
Porém independentemente da existência de mais ou menos disponibilidades financeiras, se os bens adquirem tendência para diminuir de valor, as pessoas são levadas a esperar que elas ainda se desvalorizem mais para efectuarem a sua compra. Seja com o intuito deliberado de vender dentro de pouco tempo, seja para salvaguardar a possibilidade de o ter que fazer numa emergência, as pessoas preferem neste caso ter dinheiro. Neste caso podem vir a sobejar bens.
Ao contrário, quando os bens têm tendência para aumentar de valor, as pessoas são levadas a comprar antes que elas se valorizem mais, seja com o intuito deliberado de vender, seja para que o dinheiro fique melhor aplicado, as pessoas preferem neste caso ter bens vendáveis. Neste caso podem sobrar disponibilidades face às aplicações previsíveis.
Quando a crise se instala é pois a primeira situação que ocorre. O dinheiro permanece mais imóvel, hesita-se mais no investimento, sacrifica-se mais o lucro à segurança, destorce-se o mercado, valorizando-se mais o menos volátil e não se arrisca no que está mais sujeito a volatilidade. Paradoxalmente o mais perigoso é aquilo que mais se presta para uma conversão rápida.

07 novembro 2008

Momentos da Crise (27)

Num momento de crise é natural reforçarem-se as reivindicações de apoio ao pequeno empresariado. Já anteriormente se pedia mais colaboração do Estado na instalação e viabilização do negócio desses pequenos empresários. No entanto os Governos no geral fecham os olhos à concentração que se verifica em muitos ramos de negócio.
Ninguém resiste a manifestar os seus sentimentos de simpatia pelos pequenos até porque estes estão sempre mais perto e mais disponíveis. O problema é quando se coloca o problema do preço dos serviços que eles nos podem prestar em similitude de circunstâncias. O grande, aproveitando os ganhos de escala, oferece-nos vantagens e é geralmente o preferido.
A isto acrescenta-se ainda a grande evolução tecnológica que determinou o fim de muitas profissões tradicionalmente exercidas por pequenas unidades de produção. Na produção propriamente as exigências de capital para comprar a tecnologia indispensável e a dispersão do mercado que exige um investimento em marketing incomportável para os pequenos, mais a facilidade de movimentação determinam uma concentração que elimina os pequenos.
Decerto que os grandes não vão deixar de ter crédito para poderem incentivar a produção. Estamos cada vez mais condenados a ser empregados.

06 novembro 2008

Momentos da Crise (26)

Se é verdade que a riqueza é capaz de dar origem a mais riqueza já é mentira que dinheiro gere dinheiro. Com a criação de riqueza a sociedade fica mais rica claro, mas o dinheiro só muda de mão e a sociedade não fica mais rica por haver trocas ou por haver empréstimos que paguem juros. A sociedade fica mais rica se os bens, sejam eles quais forem, estiverem nas mãos de quem lhes der mais utilidade.
Ao dinheiro de hoje, neste mercado global já não se reconhece relação com as economias locais. Os Estados vão emitindo normalmente moeda à medida do crescimento da riqueza mas procuram não inflacionar os preços, não depreciar a moeda. Aliás é a riqueza que se vai depreciando, conforme a base em que está estabelecida, conforme a seu grau de degradação.
A riqueza, embora relativa, será “sempre” riqueza mas só a sua inclusão na economia mercantil corresponde à convertibilidade em moeda. O normal será a riqueza crescer, isto é, haver um saldo positivo entre o valor dos novos bens e o valor que vai diminuindo em relação aos outros bens. À medida que a riqueza cresce mais moeda se torna necessária para garantir a fluidez dos movimentos mercantis.
Se é verdade que tem havido uma certa concentração da riqueza, na realidade tem havido uma concentração muito maior do dinheiro e o seu uso irracional. Independentemente da legitimidade da forma como esse dinheiro foi obtido, há um problema da sua utilização que tem que ser pensado. A todos os bens tem que ser garantido que o seu uso corresponda à sua utilidade social.

05 novembro 2008

Momentos da Crise (25)

Se nós produzimos milho queremos que alguém no-lo venha comprar. Se nós produzimos tesouras da poda temos que encontrar a quem as vender, de preferência por grosso, porque a retalho dá muito trabalho, a clientela possível está demasiado dispersa. Mas se a nossa produção for pequena e tivermos uma clientela fiel perto da porta talvez não necessitemos de intermediários.
Em tempos emprestava-se muito dinheiro a pessoas conhecidas, a pessoas que tinham bens penhoráveis ou que apresentavam algum fiador com crédito evidente. Emprestava-se em casos de emergência, emprestava-se para que se pudesse realizar algum negócio inadiável, emprestava-se para iniciar alguma actividade independente, emprestava-se para emigrar.
As pessoas que recorriam a empréstimos empenhavam também a sua palavra, sentiam-se na obrigação de cumprir todos os compromissos assumidos, as penhoras e as fianças eram processos raros. Quando algum usurário ficava com propriedades valiosas para pagamento de empréstimos de menor valor também era o seu nome que ficava mal visto.
A Banca nasceu da necessidade de haver uma intermediação entre quem tem dinheiro disponível e quem dele necessita. Assim a Banca tem que garantir proventos a quem empresta e ganhos para se manter a si própria em funcionamento. Quem coloca o dinheiro no Banco é lá que o pode ir buscar, não a casa ou às propriedades daqueles que lhe estão em dívida.
Quem vai à Banca buscar dinheiro sem o lá ter sujeita-se a perder os seus bens, mesmo que chamem de tudo à Banca. Já antigamente, quando as coisas não corriam como o desejado, se ficava sem as terras, sem honra, sem apoios. Mas hoje a Banca tem responsabilidades na economia em geral e nas nossas dificuldades em particular que os antigos usurários não tinham. A função da banca é demasiado importante para que funcione em roda livre.

04 novembro 2008

Momentos da Crise (24)

Dentro da crise geral que atormenta economistas, financeiros e políticos a nós cabe-nos uma crisesinha, daquelas que não tendo a gravidade da crise lá de fora, não dando para uma corrida aos bancos ou para a falência, dá mesmo assim para especulações quantas bastem.
Nacionalizar está mal, diz Cadilhe, ele que foi o Salvador chamado para atacar as labaredas que já então consumiam o BPN, que tão ciente estava do êxito da sua missão, que até prescindiu de uma choruda reforma que já auferia do BCP por ter por lá passado uns tempos.
Ele que foi chamado a uma armadilha, que até denunciou em tempo útil, vai sair desta crise perdendo tudo, irritado com tudo e com todos, mas por questões ideológicas, porque não resiste ao apelo cínico da política mais mesquinha e corriqueira, não atribui as culpas a quem o traiu, aos seus amigos, mas ao Ministro que está a defender o erário público.
Quem tem amigos como Cadilhe até nem precisa de inimigos. Poder-se-ão desculpar que afinal até ninguém estava à espera que o Governo utilizasse a legislação que está preparada para a grande crise nesta crisesinha já tão gasta e velha.
Porque convenhamos, se não é a grande crise, os nossos banqueiros continuariam a ser considerados pessoas de bem, sobre os quais quaisquer suspeitas tem como consequência o banco dos réus para quem as levanta.
O que está em causa é o papel social dos homens sempre engravatados. Hoje “só” fazem a rapinagem de todos os recursos disponíveis, controlam a sua utilização e retiram os grandes lucros. Exercem uma actividade necessária mas não directamente produtiva, a não ser para os próprios.

03 novembro 2008

Momentos da Crise (23)

As crises são muito boas para chamar a atenção para muitos erros, excessos, desvios. Porém passadas as tormentas o espírito humano é muito pródigo em esquecer lições. Nesta crise muita gente sabia os erros que se estavam a cometer, muitos os cometeram deliberadamente, mas poucos tiveram a coragem e a ousadia de remar contra a maré, de resistir à tentação de atirar o anzol para as águas de onde outros estavam a tirar bom peixe.
Muita gente sabe que, se não forem tomadas medidas a tempo, o sistema financeiro terá tendência para enveredar pelos mesmos caminhos. Mas para medidas de controlo suficientemente apertado ainda não terá chegado o tempo num processo que tem de ser de dimensão mundial.
Aliás se não houver também mudanças no sistema monetário permanecerá o vírus da instabilidade no sistema. Também quanto a esta questão deveremos acreditar que não terá chegado o momento de tomar decisões, mas mais tarde ou mais cedo lá chegaremos.
Quanto ao manuseamento do dinheiro ele tem que ser claro, transparente mesmo, as operações bancárias não podem estar escondidas tantos anos como no caso BPN. Registos em balcões virtuais a substituir os reais parece ser uma técnica só possível perante o olhar complacente das autoridades de supervisão.
Não são espiões, dizem os homens do Banco de Portugal. Se não for assim não seu como será possível controlar a emissão de moeda falsa?

02 novembro 2008

Momentos da Crise (22)

Em tempos até se instituiu um Dia da Poupança. A ideia era meritória porque visava incentivar a prática de juntar sempre que possível umas economias para instituir um pé-de-meia o mais elástico possível, para ocorrer a uma despesa mais imprevista, a um investimento mais vultuoso na habitação ou na mobilidade.
A ideia de ter uma poupança é uma ideia sadia, que não seja mais do que ter um fundo de maneio suficientemente vantajoso para que nos livrasse ao menos daquela sensação de aperto em que vive quem corre o risco de gastar até ao dia 20 o dinheiro que lhe deveria chegar até ao fim do mês.
Esta ideia que o nosso Salazar levou até aos extremos tem os seus méritos, conquanto possa ser partilhada por gente com más intenções, como é o caso. Infelizmente não é esta a única ideia posta de lado por ter sido já usada com intuitos políticos ou por gente que faz associações de ideias pouco claras e abusivas só para satisfazer ideias de outra índole, como se passa com a ideia de família.
Aliás poupança e família são duas ideias que se ajudam, que se reforçam e que podem conjuntamente servir de base a muita tomada de decisão. Poder-se-á dizer que há uma relação directa entre capacidade de poupança e o prolongamento da família através da entrada nesta de filhos.
Só que hoje está bem mais em voga a antecipação do futuro, o gastar agora e pagar depois, o viver por conta do rendimento que há-de vir. Se tal fosse feito com comedimento, se não fosse posto em causa o necessário equilíbrio do orçamento familiar, as vantagens seriam evidentes.
Mas substituir tão só o aperto da poupança voluntária pelo aperto dos compromissos certos, inadiáveis e prioritários é que parece mais confrangedor.

01 novembro 2008

Momentos da Crise (21)

A todo o momento, quando conversamos com alguém menos preparado para a dialéctica, estamos a deparar constantemente com pensamentos terminais, daqueles perante os quais é difícil argumentar, pois quase nos deixam sem outra escolha que não a de aceitação ou rejeição.
Se conseguimos ultrapassar esses autênticos nós górdios também normalmente somos acusados de falar muito e dizer pouco, pois tais pessoas estariam tão só à espera de um sim/não redutor. Por isso temos de os tratar como perigosas encruzilhadas, autênticas ratoeiras que os mais destituídos utilizam quando não conseguem ir mais além.
Mas a crise é neste aspecto um ajudante expedito para obrigar as pessoas a encontrar razões, a não se ficarem por trivialidades. A crise estilhaça a argumentação simplista, a sentença fácil, a estagnação dialéctica. Com a crise dá-se a implosão de muita verdade tida por inquestionável.
Perante a crise e o seu evoluir ziguezagueante muitas das perguntas deixaram ou vão deixando de fazer sentido. Quando as respostas sim ou não deixam de corresponder a opções viáveis ou quando o caminho começa a ser só um e cada vez mais estreito, as pessoas vão-se convencendo que as suas perguntas eram falaciosas.
As perguntas a fazer agora não são sequer como vamos sair da crise, como se estabilizarão os parâmetros mais importantes que configuram a situação económica, mas sim como deve ser estruturado o sistema financeiro, que serviços e produtos ele deve fornecer, que controle deve ser estabelecido para que uma situação como a presente se não repita.

31 outubro 2008

Momentos da Crise (20)

Descansem as almas, sosseguem os inquietos que esta crise financeira não é a revolução que há-de vir dar casas a todos os descamisados e roupa de marca aos sem abrigo. O capitalismo não morre, muito menos capitula de uma forma tão espontânea, tão rápida, tão sem luta.
Os poderosos sempre andaram em lutas intestinas e nem por isso perderam o poder de modo definitivo. Bárbaros invasores, proletários revolucionários nunca fizeram avançar a liberdade, antes depressa criaram novas formas de aviltamento da condição humana. Não é saudável ter esperança se nada se fizer para mudar já as coisas.
Era efectivamente bom que todos estes problemas se resolvessem e que a sociedade pudesse encontrar sem perseguições vingativas, atropelos à liberdade, humilhações gratuitas, um caminho mais justo, mais equitativo, mais estimulante, mais solidário, mais integrador. Era bom que os homens se preparassem para uma façanha que é imensa.
Só que cada vez mais nós nos enredamos nas malhas da competitividade, da exaltação de pequenas e grandes vitórias individuais, na aritmética dos números que só especialistas entendem, na leitura de índices criados numa lógica de progresso contínuo, na crença em vanguardas, ora de formação ideológica, ora formadas em teoria mercantil.
Deixamo-nos enlear pela mesquinhez dos que se movem pela ânsia de poder, pela visão curta de novos intelectuais que privilegiam a formação de pequenas ilhas de auto-suficiência, pelo imediatismo sem sentido promovido pelos meios de comunicação, pela promiscuidade das ideias e valores.
Evitemos ao menos que o lodo nos não contamina o espírito, não nos deixemos paralisar por sentenças idiotas dos fundamentalistas de todos os matizes, mas principalmente daqueles que lhes aproveitam aleatoriamente alguns pensamentos.

30 outubro 2008

Momentos da Crise (19)

A compra de casa própria passa há uns anos a esta parte pela obtenção de empréstimos específicos na Banca. O critério é fixar um valor indexado à Euribor que portanto se manterá constante, caso esta taxa não sofra alterações. Portanto, sendo um empréstimo a longo prazo, está sujeito a todas as turbulências ocorridas a nível do mais curto prazo.
Como o empréstimo tem um prazo pré-determinado, com base no qual foi determinada a partilha entre juros e amortizações, caso os juros se alterem, como as amortizações terão que se manter no mesmo valor para que terminem dentro do prazo, a diferença nos juros tem de ser paga de imediato.
Mantendo-se o plano de amortização, mesmo que a prestação varie durante o período do empréstimo, o edifício em causa vai entrando progressivamente na posse efectiva do comprador, sendo cada vez menor a parcela do valor inicial que é devida à Banca.
Se o comprador optar por passar a inquilino é evidente que em parte ele passará a ser inquilino dele próprio, a não ser que a Banca lhe recompre a parcela correspondente à amortização efectuada. A renda que será legítimo pagar pela habitação é em parte devida a ele próprio.
Se o comprador optar por, passado um período determinado, voltar a pagar os juros conforme a taxa em vigor e as amortizações pré-definidas, não haverá qualquer prejuízo para ambas as partes.
Se assim for, o sistema será altamente vantajoso para quem estiver em dificuldades, sem que se veja que possa haver aproveitamento indevido da situação. Corresponderá a um adiamento do fim do contrato de compra. Quem não tiver dificuldades não quererá recorrer a este esquema porque quererá acabar a compra da casa o mais cedo possível.
Qualquer avaliação ou reavaliação só é admissível neste processo para fixar a renda temporária ou a renda definitiva se no final do período de arrendamento o comprador optar por desistir da compra e passar a inquilino.

29 outubro 2008

Momentos da Crise (18)

O Patrão do BES já avisou a navegação que vai recorrer às garantias do Estado, não porque precise, o que parece evidente, mas porque se não recorrer, ficará em clara desvantagem competitiva com todos os outros Bancos que dela beneficiem.
Se todos os compradores de casa seguissem a mesma lógica com a aplicação das medidas de que se fala para possibilitar a reversibilidade da sua compra em aluguer e se elas vierem a beneficiar os compradores que deixem de poder pagar, criar-se-ia uma situação complexa.
Se essas medidas trouxerem vantagens evidentes para quem a elas recorrer, é legítimo que todas a elas se candidatem e é impraticável que o Estado aplique algum filtro para evitar que nem todos a elas recorram. De qualquer modo passar um período de turbulência em que indexante anda à deriva com o pagamento de uma renda constante já é um grande benefício.
A renda será sempre só alterável de ano a ano e em montantes de certo modo pequenos. Os juros pagos pelo empréstimo para compra de uma imóvel podem variar trimestralmente e em montantes bem mais elevados. O recurso à renda pode ser pois apelativo para quem se sente pressionado pelo emagrecimento dos rendimentos.
A solução é praticável mas aplicar-lhe critérios discricionários é sempre questionável. Um dos problemas é a obtenção de empréstimos superiores ao valor dos prédios comprados. A avaliação destes pode ser necessária para fixar a renda mas se a diferença for atribuída à obtenção de empréstimos complementares cria-se um situação de difícil destrince.

28 outubro 2008

Momentos da Crise (17)

Nesta crise apareceram os Estados, todos, a apoiar a Banca, dizendo que através dela estão também a apoiar toda a espécie de endividados, de empresários em dificuldades, a apoiar todos os que estão por baixo da média, e vamos lá, até daqueles que tão custosamente a alcançaram.
Claro que daqueles que mais se fala é dos que, apanhados pelo efeito deslizante da Euribor, se viram em pouco tempo perante o problema de a prestação que estavam a pagar ao Banco já quase não chegar para satisfazer só os juros quanto mais as amortizações.
Se assim é, seria lógico que esses juros passassem a renda e que o comprador passasse a inquilino. È evidente que o problema maior é a aplicação a este tipo de empréstimos de uma taxa variável, cujo indexante se comporta de modo tão totalmente imprevisível que pode em curto espaço de tempo duplicar, triplicar ou crescer ainda mais.
Na verdade ninguém se encontra disponível para emprestar dinheiro a tão longo prazo a uma taxa fixa, quando se sabe que ela é insustentável. Ninguém se sujeita a uma imobilização do seu património monetário por tão grande período, antes privilegia a sua aplicação a curto prazo com a obtenção de juro aplicável de momento.
Este empréstimo é pois uma imprevidência só aceite pelo comprador. Para quem queira correr este risco a Banca já deveria prever e incluir no contrato, além do possível resgate do empréstimo possibilitado pela hipoteca, também a convertibilidade de compra em arrendamento. Aplicá-la agora em termos diferentes dos acordos que já a previam é que não parece correcto.

27 outubro 2008

Momentos da Crise (16)

Quando se fala no estado da nossa economia invariavelmente vem à baila o nosso fracasso em termos de competitividade. Só que a competitividade tendo costas tão largas! Ela é interpretada de diferentes formas pelos vários actores, desde políticos a para-políticos e aprendizes de feiticeiro, de modo que nela cabe quase tudo.
Uns atribuem a nossa fraca competitividade porque por cá se pagariam salários excessivos comparados com os dos países produtores da mesma categoria de produto, mesmo que só se tratem de futilidades. A solução passaria por pagar menos, mesmo que se saiba que isso é impraticável. Quem tem uma moeda forte sujeita-se a não ser competitivo.
Outros atribuem a nossa incapacidade para competir com outros à resistência que os nossos trabalhadores têm a se submeterem aos ritmos de actividade a que aqueles estão habituados, mesmo aceitando salários equiparados aos nossos. Na realidade isso não é verdade quando a tecnologia é a mesma e as condições de trabalho idênticas.
Outros ainda concedem todas as culpas de perdermos em competição com os outros à nossa baixa classificação. Não teremos a necessária capacidade para utilizar a tecnologia mais avançada, os métodos mais modernos, a organização mais flexível. Mas também não teremos a dimensão para podermos liderar os sectores mais lucrativos.
Altos salários, fraca produtividade, baixa qualificação, péssima organização, de tudo nos acusam quando se não procura avaliar aquilo que será possível fazer, mas também aquilo que manifestamente nunca estará ao nosso alcance produzir para um mercado aberto, sujeito a uma concorrência desenfreada. Também esta pode ser aperfeiçoada.

26 outubro 2008

Momentos da Crise (15)

As bolsas de valores têm mais detractores que apoiantes e numa primeira apreciação até parece que a razão deveria estar com os primeiros. Mas se nas sociedades em que o dinheiro só tem uma função como moeda de troca não há razão para a existência de bolsas, já quando o dinheiro tem uma função investidora há que assegurar a sua aplicação directa que não apenas em empréstimos à banca e a particulares.
No entanto esta facilidade de instantaneamente compramos e vendemos acções que são parte do capital de sociedades de maior ou menor dimensão, mas sempre significativas, converte uma entidade que é pressuposto ser sólida, ter sido construída com muito esforço e empenho de muita gente e à custa de muito capital, numa entidade vulnerável, sujeita à irracionalidade dos movimentos especulativos de euforia ou pânico.
Mesmo em período de acalmia custa a entender, a quem for estranho a este mundo mais virtual do que qualquer um que a Internet possa criar, que os dividendos pagos por uma empresa cotada na bolsa, que muitas vezes tanta falta lhe fariam para promover investimentos que a projectassem mais no futuro, sejam engolidos repentinamente por movimentos conduzidos por pressupostos desconhecidos.
Aquilo que representa o lucro de um ano de trabalho, que representa o esforço de muito gestor e empregado, pode ser posto em causa num só dia, nos dias de hoje apenas de um dia para outro, parece que após uma noite mal dormida por quem não sabe que fazer ao dinheiro. Como compreender a volatilidade das acções cotadas na bolsa?

25 outubro 2008

Momentos da Crise (14)

Já havia na situação financeira anterior à crise dados suficientes para fazer diferentes avaliações de risco que deveriam prevenir os homens da finança quanto ao equilíbrio e segurança do sistema no seu conjunto.
Um dos dados é a permanente aumento da acumulação capitalista, a cada vez maior canalização de recursos para a posse de alguns apenas, a rarefacção dos restantes proventos por uma cada vez maior classe de dependentes assalariados.
Espalhou-se a promessa de um crescimento sem fim, mas acima de tudo, caiu-se na crença do que ela haveria de contemplar toda a gente, todos beneficiariam progressivamente com ele.
A globalização foi um dos factos que mais contribuiu para a cumulação capitalista pela competitividade que se instalou e pelo aproveitamento de recursos humanos em condições de manifesta desigualdade.
A entrada do grande capital na especulação e na agiotagem levou à drenagem dos recursos financeiros. O capital sem rosto, acumulado e aplicado em fundos de pensões, fundos de investimento e toda a espécie de fundos de complexidade variável, submete-se muito mais facilmente aos determinismos imprimidos aos movimentos especulativos por outros factores que saem do seu controle.
Nos movimentos ascendentes há afluência de liquidez e o fundo lá está para a aplicar. Nos descendentes a necessidade de liquidez implica a venda em turbilhão de activos e a desvalorização geral do fundo. Eis aí a crise.

24 outubro 2008

Momentos da Crise (12)

Nos empréstimos para compra de uma casa é aplicado um juro variável conforme as condições do mercado. Não poderia ser de outra maneira porque o sistema bancário para se financiar também obtém dos particulares, ou doutros parceiros do sistema, empréstimos nas mesmas condições.
Nos empréstimos a curto/médio prazo o sistema bancário corre o risco de aplicar uma taxa fixa que lhe traz vantagens quando os juros descem mas que lhe traz problemas se os juros sobem e pior ainda se estes sobem abruptamente. Nos empréstimos a longo prazo esse risco é demasiado grande para ser corrido.
Quando os juros são baixos parece aliciante pagá-los para que se possa obter a antecipação da compra de um bem. Mas quando os juros duplicam é certa a asfixia financeira do devedor porque normalmente tem o restante do seu rendimento afecto a outros compromissos.
No caso apresentado era necessário que o devedor pudesse dispor de 250 € suplementares para pagar o juro e manter o mesmo plano de amortização. A alternativa tem sido diminuir a parte da prestação destinada a amortização, alongando assim esta. Mas aqui há um limite evidente que é o período de vida útil previsível do devedor.
O comprador só acabará de pagar a sua casa quando for velhinho e o valor que a mesma terá nessa altura será também imprevisível. Além da degradação natural de um edifício qualquer deveria ser tomado em consideração que a sua depreciação em função dos materiais empregues e da evolução tecnológica pode ser drástica.
Toda a gente está com as suas dispensas e armazéns cheios de máquinas, utensílios que revelam bem a evolução que se faz sentir em todos os domínios, que já tem alterado a construção civil, mas que previsivelmente a revolucionará dentro de poucos anos.

23 outubro 2008

Momentos da Crise (11)

Antes de contrair um empréstimo é normal que procuremos saber que juro vamos pagar e qual o plano de amortização que nos é proposto. No entanto quem comprou casa só se preocupou em que a prestação a pagar não fosse muito para além de uma renda de casa normal.
Cada prestação que uma pessoa paga para vir a ser proprietária de um casa passadas umas décadas inclui juro e amortização pelo que um princípio basilar deste método é que o juro inicial seja inferior ao valor de cada prestação para que algo se vá amortizando.
Se uma pessoa dispuser de 500 € por mês para pagamento da prestação de uma casa pode contrair um empréstimo de 100.000 € a um juro de 3%. Neste caso, da sua prestação, 250 € serão o juro que terá que pagar e os outros 250 € serão para amortizar o empréstimo, pelo que no próximo mês o seu débito passa a ser de 99.750 €.
Na próxima prestação 249,375 € serão o juro a pagar e 259,625 € serão para continuar a amortização do empréstimo. O débito vai assim diminuindo e de modo progressivo. De cada vez a parte de juro será menor e a parte de amortização será maior. Se a amortização fosse sempre igual todo o débito seria pago em 400 meses=33 anos e 4 meses. Assim será um pouco mais rápido.
Porém se uma pessoa dispuser dos mesmos 500 €, mas o juro for de 6%, significará que toda a sua disponibilidade é para pagar o juro e nunca conseguirá anular o débito. Ninguém de boa fé emprestaria a uma pessoa destas o dinheiro para comprar uma casa, se não é garantido que a receita se mantenha e que o juro não venha a aumentar
.

22 outubro 2008

Momentos da Crise (10)

É normal dizer que quem mais tem mais perde ou que só perde quem tem. A crise insere-se no processo de acumulação capitalista em que uns perdem efectivamente para que outros tenham os ganhos correspondentes. O dinheiro não se esfuma, não sai sequer dos circuitos financeiros, o problema reside somente em saber se é racional extorquir lucro de quem não exerce actividade compatível com o retorno esperado dos empréstimos.
Mas são aqueles que mais dificuldades apresentam em cumprir os compromissos assumidos quem mais tem que suportar toda a espécie de intermediações. O sistema financeiro recorre a múltiplos expedientes para ele próprio pagar um empréstimo contraído que dê suporte a um empréstimo concedido a longo prazo e que vai ser reembolsado a conta gotas.
A aposta do sistema financeira é diferente conforme a dimensão temporal previsível das actividades a financiar. Quem exerce uma actividade industrial, comercial ou de serviços não podendo dar garantias, não tem hipóteses de recorrer a empréstimos que não de curto/médio prazo. No entanto no actual crédito ao consumo, seja qual for o prazo, não se olha à capacidade de cumprir com as obrigações decorrentes da aceitação de financiamento.
No crédito a longo prazo não constitui problema saber que a grande maioria das pessoas que a ele recorre se endivida a tal ponto que deixam de ter possibilidades de pensar em investir numa mudança de vida profissional, no exercício de novas actividades. Condenam-se a um estilo de vida que os persegue durante décadas. Deveremos nós comprometer desta forma o nosso próprio futuro?

21 outubro 2008

Momentos da Crise (9)

As religiões, mais umas do que outras, valorizavam o ser homem, dependendo tal do conceito em que é tido e denegaram nitidamente quem se não enquadrasse nesta visão. Marx atribuiu o supremo valor ao tempo do homem, medida de todas as outras valorizações que, a não ser a económica, não especificou e que deixou ao senso comum atribuir-lhe.
O liberalismo económico atribuiu o supremo valor ao QI, também aceite como a medida pela qual devem ser vistos todos os outros atributos e qualificações. Basicamente são três maneiras diferentes de ver, mas cada uma tem ainda várias interpretações, várias formas de enquadrar e dinamizar a realidade.
Estas três atitudes, quando adquiriram supremacia quase absoluta, levaram até extremos insustentáveis. Quem não contribuir com religiosidade, com disponibilidade ou com QI está para todos os efeitos tramado. Então pensou-se que se poderia construir um mundo estável assente nestas três forças que se aplicariam sob a batuta do liberalismo económico.
O liberalismo económico, como pretenso sobrevivente de todos os outros ascendentes, não desdenha a religião que propõe a resignação, nem o marxismo que propõe a valorização dos operários pelo seu tempo de trabalho. Mas realça a sua própria teoria defendendo serem os cérebros iluminados por ela que são capazes de gerir os destinos do mundo.
Gestores de fortunas, das expectativas, das incertezas do futuro, não só canalizam o investimento e definem as prioridades, como antecipam o futuro, antecipam as suas dúvidas e imprecisões. Na realidade atiram com o futuro para cima de nós.

20 outubro 2008

Momentos da Crise (8)

O dinheiro não desaparece, anda por aí como o outro anda, mas o certo é que se instalou uma enorme ansiedade resultante do medo de ver irrecuperável o dinheiro que se deu por algum bem agora com menos valor ou até sem valor algum. Os negócios não se revertem.
Nos dias de hoje o problema extravasa muito o campo das Bolsas de Valores, embora sejam estas as primeiras a ser penalizadas, porque se presume que será nos negócios lá feitos que o dinheiro é arrebanhado. No entanto, se muito dinheiro sai pelas Bolsas, muito mais é hoje retirado das carteiras das pessoas, utilizando as Bolsas como pretexto.
Os Estados que têm capacidade para isso estão a dar uma almofada à Banca para que ela, nesta fase de desconfiança, mas também na próxima fase de renovação que se tem que seguir, possa fazer o dia a dia sem grandes problemas de liquidez. À medida que se vão arrebentando os balões com que a Banca encheu as suas contas, é necessário suster o seu impacto.
Os técnicos que forem encarregados pelos governos de estudar a reorganização de todo o sistema bancário têm, não só que arquitectar algo de seguro em termos de produtos e títulos passíveis de compra e negociação, como de assegurar uma transição sem grandes percalços.
Em relação a cada investimento feito tem que ser referidas todas as hipóteses de risco que ele pode comportar, incluindo os imponderáveis que a gente avisada sempre detectará aqui como em toda a actividade económica.
A verdade é que este edifício como está não tem salvação. Muita gente terá que “ir plantar batatas” e deixar de andar todos os dias de fato e gravata. A actividade financeira não pode dar de comer a tanta gente cuja actividade é tramar-nos.

19 outubro 2008

Momentos da Crise (7)

Num livro recente Pedro Strecht afirma que a adaptação das expectativas dos pais em relação aos filhos reais que possuem, suas características de personalidade, pontos fortes e fracos é fundamental para um bom percurso escolar dos mais novos.
Também reconhece quanto isto é difícil dado a cultura dos adultos os levar a negar, desvalorizar e manifestar o maior descontentamento e até a humilhar publicamente os filhos.
Tanto assim é também na economia e por arrasto na política em que as expectativas criadas em tempo levam agora a manifestações de verborreia despropositada e injusta. Quem se preocupa em adaptar as suas expectativas às condições objectivas que se vão revelando?
Durante muito tempo as expectativas foram sempre em crescendo, à medida que algumas se iam satisfazendo mais e mais se criaram, criando um clima em que os sentimentos e emoções mais negativas se foram consolidando. Hoje, para bem da saúde mental de muitos, era bom fazer um reajuste das expectativas face às condições reais existentes.
De qualquer modo a maioria das pessoas só cairá no real quando a crise não afectar somente as expectativas, mas vier a afectar algumas das regalias já atingidas no passado. Aliás o mundo só tem a ganhar se se refrear as ambições, as ganâncias, a temperatura de todos os ambientes que, à semelhança da natureza, tem o seu nível próprio para funcionar bem.

18 outubro 2008

Momentos da Crise (6)

Já não será possível submeter o sector financeiro a velhos espartilhos. Como seria pô-lo a trabalhar somente com os velhos produtos que constituíam o seu negócio inicial? Depósitos à ordem, a prazo, empréstimos e participações. Tudo muito claro e preciso. Talvez um produto mais ou menos estruturado, mas com contornos precisos.
E três ou quatro bancos não chegariam para haver a necessária concorrência? Assim se evitaria também o imenso desperdício que hoje se vê na banca. Como é possível que numa pequena Vila, onde toda a gente diz viver em crise, haja mais de cem funcionários bancários?
Esta crise promoveu a dessacralização do sector financeiro, a colocação sob suspeita dos seus dirigentes. Todos sabemos que o dinheiro afecta o carácter das pessoas e estes senhores que vivem nele embrenhados, que não lhe perdem o cheiro, são contaminados pelo seu efeito de corrupção dos espíritos. Ninguém escapa ao seu charme.
Talvez sejam produtos que tinham preparado antes da crise, mas espanta que a publicidade ainda nos traga o mesmo tipo de produtos, o mesmo género de embustes que estão a constituir o desespero de milhões de accionistas que acreditaram na existência de uma base real sólida para eles. Mas para quê se agora só um louco lhes pegaria num fundo que não o têm.
Uma mudança de regras impõe-se, mas são as pessoas que se têm que esclarecer melhor sobre aquilo que lhes querem impingir. Se nos não convencermos que a ganância está por todo o lado não encontraremos solução para este desregramento. Deixar-nos-emos iludir por quem passa a vida a pensar em maneiras de obter lucro com o nosso dinheiro.

17 outubro 2008

Momentos da Crise (5)

As causas da crise serão muitas: Umas internas ao sistema financeiro, outras internas ao sistema económico, outras relativas às relações que se estabelecem entre os dois, outras ainda internas ao sistema económico-financeiro visto como um todo.
Claro que ainda haverá outras razões, estas exteriores, do domínio do sistema político, por exemplo, e daqui, donde se pressuporia uma intervenção pela acção, as culpas na ocorrência da crise até podem ser por omissão. Há falta de regulamentação e até de uma análise objectiva de custos e benefícios que se poderão obter com certos produtos e serviços que o sistema bancário oferece.
O facto de haver pessoas integradas num sistema e que dizem que ele funciona bem e tem hipóteses de desenvolvimento e expansão só quer dizer que na sua perspectiva é possível explorar as suas potencialidades no sentido da obtenção de lucro, mas nada permite dizer que esse sistema esteja a cumprir as funções para que foi criado, que decerto integram o interesse de muitas outras pessoas.
Muitos até reconhecerão que o sistema está inquinado e favorece alguns, mas encaram-no com a naturalidade das coisas inevitáveis. Uns só andam à procura da perversidade do sistema para a explorar. Outros com responsabilidades tentarão suavizá-la.
Aniquilar a perversidade destes sistemas já é uma tarefa complicada e muito difícil, dada a interligação existente entre eles. Quando muito as pessoas procuram caminhos alternativos e não se preocupam com os existentes. Até porque a sociedade já paga imenso a polícias que não fiscalizam e a ladrões que afinal só usam as suas facilidades.

16 outubro 2008

Momentos da Crise (4)

Porque existe tanta volatilidade no mercado de capitais? Como se justifique que uma acção possa ter uma flutuação de valor a nível dos quatrocentos por centos? Os bens que as acções representam são assim tão pouco consistentes face ao valor da moeda que se mantém inalterável? Porque razão a crise actual atingiu o âmago do sistema capitalista?
Quando os próprios detentores de capital promovem a descida tão abrupta da capitalização bolsista, porque só eles têm os títulos para o fazer e o capital para o suster, tornando vulneráveis as empresas representadas, não as farão correr riscos desnecessariamente?
Uma das razões destes factos é a criação pelo sistema bancário de uma série de produtos intermédios de valor discutível que tem por objectivos dar aplicação à massa monetária disponível no mercado.
Outra das razões é que, porque se não querem sujeitar a correr demasiados riscos, os bancos intervêm nos vários níveis de investimento. Trocam participações e produtos, o que dificulta a destrinça de quem se sujeita a correr mais ou menos riscos. Quando caem são todos e só se levantam se for em conjunto.
Por último, dentro desta linha de razões, mas não a última, nem muito menos este grupo será o das mais importantes razões, temos as empresas do sector produtivo e comercial a investir fortemente no mercado financeiro na tentativa de aumentar os seus lucros.
Toda a liquidez que é obtida pelas empresas, e não se prevê ser necessária a curto prazo, é aplicada em produtos financeiros. Perante qualquer abalo no sistema, sendo necessário realizar liquidez, vêem-se perante prejuízos inesperados.

15 outubro 2008

Momentos da Crise (3)

O apóstolo do apocalipse é aquele que diz que surgirá um dia em que tudo será posto em causa. Virtuosos que o contestam dizem sempre que há “coisas” sólidas na nossa vida, valores, comportamentos, instintos, emoções, sentimentos e mesmo “coisas” mais complexas como invejas, ganâncias, ciúmes, umas boas outras menos, mas que se arrastam umas às outras e cujo lado perverso não é suficiente para enlamear as seus aspectos positivos.
Neste sentido o apóstolo da desgraça não será de louvar, mas às vezes é necessário pôr tudo em causa para que o abalo no sistema seja capaz de nos permitir ver até onde as suas raízes estão putrefactas. Que esta crise existia todas a gente sabia, mas os primeiros a denunciá-la são sempre apelidados de alarmistas.
Já os mais interessados na solução da crise, pelo menos aqueles que aparecem como defensores do sistema, acabam por ser os que dizem sempre que os apoios foram poucos e talvez acusem o Estado pela ineficiência geral da economia.
O sistema bancário passa por ser de uma eficiência a toda a prova, mas na realidade não traz valor acrescentado e como sector intermediário só retira da economia em geral os recursos com que se alimenta e que poderiam ter melhor aplicação.
A economia precisa dele, mas é demasiado caro, pesado, representa um custo excessivo. Simplesmente os analistas são eles e não iriam dizer mal de si próprios. Em geral nós vemos com bons olhos o sistema por aquilo que ele nos faculta: Dinheiro de plástico, crédito fácil e acessível.
Comece o sistema a necessitar de se financiar por aí e a aplicar um preço por certos serviços que presta e teremos todos contra ele.

14 outubro 2008

Momentos da Crise (2)

Não estamos condenados a carregar a cruz eterna. Não nos cabe deitar as culpas todas para os outros, mas também não as temos de segurar todas para nós. Navegamos no mar alto, já há muito levantamos âncora e nos fizemos à tormenta e à bonança.
Matamos os poderosos para lhes ficar com as riquezas, quando eles nem para escravos nos serviam. Mas não podemos pagar por isto toda a vida. O tempo é implacável para o bem e para o mal. O passado esquece-se, o destino ainda está por descobrir, valha-nos isto.
Que bom é podermos usufruir desta dúvida, ter esta esperança. Mas convém que a metodizemos, não pode ser assim tão vaga que não lhe reconheçamos um fio condutor que nos leva lá, à terra de todas as promessas, ao mundo que se descortina em todos os sonhos.
Deixemos para o passado aquilo que nunca nos foi explicado, mas que sabemos ter sido resolvido à espada e com a força dos canhões e bombardas. No futuro o tempo sobra-nos. Os outros não nos fazem mal, mas também nós não os incomodaremos.
Porém alguma coisa tem que mudar e para isso não nos podemos fiar só no bom senso, porque ele pode chegar tarde. Também já nos não podemos fiar em velhas teorias. Marx sucumbiu perante tanta abundância de tempo. Algum dia virá em que os marxistas já não terão tempo para vender a ninguém, isto é, já ninguém estará disposto a comprá-lo, pagar por ele.
Algum dia os liberais descobrirão que a competição exacerbada pode ser um desperdício de energia à dimensão a que é feita, tal como a cooperação é muitas vezes um desperdício de tempo para esconder muita ineficiência. Mas pode-se aplicar a cooperação e ter em conta a produtividade e aplicar a competição e não ter em conta o desperdício.

13 outubro 2008

Momentos da Crise (1)

Imensa gente corre, célere, a tentar oferecer serviços que ninguém quer. Os Velhos do Restelo, sempre presentes nestes momentos de maior aflição, declaram-se ufanos por a realidade ter dado razão às suas previsões.
Sempre disseram que ainda há-de chegar o dia em que cada qual cultivará a sua courela, lá permanecerá de sol a sol, munido sempre da eterna sachola, semeando nos regos abertos a pulso a semente do seu desassossego, plantando tudo o que lhe há-de dar o alimento amargo e se a inclemência do tempo tiver comiseração destes infelizes mortais.
Terão razão, vamos nós lá saber! Que eles passam a vida a instruírem-se nas artes da adivinhação e já há muito perderam o vínculo à terra, andam no ar, é verdade. No Restelo não se cultivam hortas e o céu é mesmo azul.
Os nossos lavradores bateram palmas aos primeiros tractores, saudaram o progresso, não decerto a pensar que iriam passar o resto dos seus dias a olhar os passarinhos e a cheirar o odor das flores campestres. Levantaram âncora e deram-se à bolina de modo a chegar a outros ancoradouros mais seguros.
A sociedade tinha mais do que ócio para lhes dar. No entanto o futuro era tão incerto que, na sua voragem, criava vertigens e sonhos de um abrigo perdido. Velhos já somos todos nós!

19 julho 2008

As razões do nosso esquerdismo (44)

Em relação ao fundamental da personalidade individual o PREC não alterou nada. Como havia que tomar e fazer com que os outros tomassem decisões rápidas, o essencial era preparar as mentes para escolhas simples em que depressa se chegasse a um redutor Sim/Não que tornasse tudo irreversível no caminho previamente escolhido por quem geria/dominava a informação.
Explicar a sério o passado era demasiado complexo e não criava as reacções emotivas que interessavam ao momento. O melhor, pensavam, era colocar o passado numa nebulosa em que os figurantes pudessem mudar de papel, ora aparecendo subitamente com um manto de heróis ora com uma capa de vilões, conforme as conveniências. As personalidades reais, viam assim diluídos os contextos e, ou se agarravam firmemente aos seus alicerces originais, ou acomodavam-se como podiam num cenário quase desconhecido.
Velhos defensores até às últimas de um regime moribundo ou pessoas penalizadas pelo regime anterior, mas por razões de desonestidade e deslealdade para com o seu semelhante, apareceram subitamente como os maiores democratas de sempre, desde o berço e, se necessário fosse, três gerações atrás. Antifascistas incómodos que sempre haviam sido prejudicados eram enxovalhados por pretensamente terem beneficiado de algo.
A grande maioria do povo que sempre estivera alheado das lutas políticas levava isto a título de disputa que lhe não dizia respeito. Mas houve sempre quem se envolvesse nesta luta em cenários estereotipados e fosse induzida a copiar métodos, imagens, roupagens. Já a respeito de participação ficava-se apenas pelo nível do atrevimento. Sempre contaram com ele para que não fosse necessário muita convicção para manifestar alguma valentia.
Contavam que maior número de pessoas se desprendessem de valores pessoais, que estes não estivessem afinal tão arreigados, os ideólogos de direita e esquerda previram um comportamento estereotipado e determinista. Em parte enganaram-se. A nebulosa sobre o passado teve um efeito nefasto. O atrevimento era menos que o esperado e não entusiasmou a maioria. A percentagem que a esquerda mobilizou não foi suficiente para uma revolução.

18 julho 2008

As razões do nosso esquerdismo (43)

Os sindicatos de antes do 25 de Abril de 1974 faziam parte de uma estrutura dependente do Ministério das Corporações e eram controladas pela polícia política. De nível distrital e por sector de actividade não desempenhavam qualquer papel reivindicativo. Mesmo assim o PCP tentou várias vezes furar o controlo, tarefa em que teve algum sucesso não conseguindo no entanto impedir as infiltrações em sentido contrário.
Um controlo menos apertado deu origem no tempo de Marcelo Caetano à criação da Intersindical Nacional com seis sindicatos que pretendiam uma estratégia comum. Com o 25 de Abril o PCP passou a controlar todo o movimento sindical através principalmente da adesão voluntária à Intersindical Nacional (CGTP-IN).
Embora adoptasse o modelo dos sindicatos verticais e nacionais o PCP não o impôs de imediato. No geral em 1974 os sindicatos tiveram um papel de contenção, na tentativa de enquadrar as lutas sociais dentro dos parâmetros consentidos pela luta política. Com o 28 de Setembro de 1974 e a primeira grande derrota da direita, com o aumento do controlo da situação política por si, o PCP tentou solidificar a estrutura sindical com a lei da unicidade sindical.
Sem eleições, sem Constituição, a imposição dos sindicatos únicos não foi nem mais nem menos que o começo de uma tentativa de ditadura que o PCP tinha, no seu congresso extraordinário de Outubro de 1974, retirado do programa e dos estatutos. Foi um momento de rotura para muitos que haviam acreditado até aí na sinceridade da busca de um caminho português para o socialismo.
Com o 11 de Março de 1975, as nacionalizações e a criação doutros movimentos mais abrangentes em termos sociais, o papel dos sindicatos complicou-se e em parte diminuiu. Em muitos casos tornaram-se assessores das direcções das empresas e serviços. Temporariamente cederam perante os velhos e os novos patrões.
Com o seu alinhamento declarado, com a integração e quase diluição numa virtual Muralha de Aço, os sindicatos da Intersindical desistiram da sua função e perderam-se no turbilhão em que se tornou a vida política.

17 julho 2008

As razões do nosso esquerdismo (42)

Afora o facto de alguns países ainda manterem pequenos territórios sob o seu domínio, Portugal foi o último dos grandes colonizadores a libertarem as suas colónias. Por mais consentido que fosse o domínio, por mais fracas que fossem as perspectivas de um melhor governo autónomo, por maior benevolência do bloco ocidental, a Comunidade Internacional não condescenderia mais num prolongamento exagerado da situação.
A política de Salazar era a do tudo ou nada e a recusa de quaisquer conversações. Marcelo Caetano seguiu-lhe o erro. A luta libertadora desenvolvia-se em cada uma das três colónias principais a ritmos próprios. Em 1973 acelerou decisivamente na Guiné. Todo o edifício tremeu, vieram à baila outras lacunas do regime, a situação internacional tornou-se mais desfavorável à manutenção da situação colonial. O exército deu o golpe.
O poder da esquerda no PREC tornou a descolonização desde logo irreversível. Obtiveram-se acordos em que o princípio revolucionário foi aceite, pondo fim abrupta e ingloriamente a uma presença secular. Tudo foi excessivamente simples. A situação mais complicada era a de Angola em que à partida haviam três movimentos com implantações diferentes e que conflituavam entre si.
A política geo-estratégica imponha que os apoiantes do bloco de leste tivessem uma acção de apoio à transferência do poder para o MPLA. Conseguida a inclusão de Angola no bloco de leste, conseguida a sovietização de todo o Império Colonial, deixou de interessar à URSS manter aqui um foco de agitação permanente.
Houve um acordo tácito, consequência lógica de todo um percurso histórico já consolidado a que Salazar chamaria os ventos da história. Em 25 de Novembro de 1975 Cunhal levantou a bandeira da paz, tinha desempenhado o seu “triste” papel. Estavam satisfeitos os objectivos geoestratégicos da URSS.

16 julho 2008

As razões do nosso esquerdismo (41)

Em 25 de Abril de 1974 Portugal pertencia à EFTA, organização de comércio liderada pela Grã-Bretanha e que ainda hoje subsiste com os membros que a não quiseram abandonar para aderir à Comunidade Europeia.
Esta organização de que Portugal foi membro fundador muito contribuiu para o desenvolvimento industrial do País, embora numa lógica de divisão internacional do trabalho que visava acima de tudo aproveitar a mão-de-obra pouco qualificada e excedentária.
A EFTA não assentava em princípios políticos nem visava evoluir para qualquer tipo de organização com natureza política. Mas como Portugal já pertencia à NATO tinha na EFTA a sua forma de integração na economia ocidental, beneficiado também dos acordos que a EFTA tinha com outros blocos económicos, que permitiam ultrapassar divergências bilaterais. Estava garantida a eficácia mínima da política externa do regime de Salazar.
O poder instituído após o 25 de Abril, tendo uma marca cada vez mais acentuada de esquerda, procurou manter tratados e alianças e evitar tudo o que pudesse ser entendido como interferência exterior. No entanto era impossível que Portugal deixasse de ser visto como integrando uma zona de influência das potências ocidentais.
Por falta de uma actuação eficaz por via diplomática, os governos ocidentais procuraram explorar outros contactos, outras formas de “interferência” nos assuntos internos que lhes permitisse assegurar que o País não saísse muito do padrão ocidental.
Por pertencer à Internacional Socialista, mas também por exclusão de partes, já que Sá Carneiro esteve bastante tempo afastado da liderança do seu partido, coube a Soares desempenhar o papel agregador internamente e de projecção mundial inquestionável. Coube a Cunhal representar os interesses antagónicos a esses que eram os do bloco de leste.

15 julho 2008

As razões do nosso esquerdismo (40)

No PREC o PCP procurou a todo o custo que as pessoas assumissem que ser de esquerda fosse ser do PCP. Interessava-lhe mais esta luta do que qualquer outra mais vasta. As pessoas iam aceitando ser socialistas e às tantas aparecia o PCP a dizer que o socialismo era dele e era nele que as pessoas tinham que acreditar.
Sendo o poder por natureza de esquerda, a discussão que se imponha era a da legitimidade da existência de uma vanguarda que o devia exercer, porque a teoria dizia que nem toda a gente estava preparada para tal. As pessoas eram incentivadas a participar na comunidade a que obrigatoriamente as queriam agarrar, em associações cuja natureza era o menos importante e delegar nelas a fase seguinte à democracia de base.
Sendo as pessoas postas a discutir e decidir sobre assuntos de âmbito limitado, sendo as escolhas postas em termos simplistas e obedecendo às regras da dicotomia era possível manipulá-las e pô-las às tantas a fazer escolhas sucessivas que levavam a resultados que interessavam aos vanguardistas de cartilha. A dimensão que cada organização abarcava era estudada e escolhida para garantir o seu controlo.
Confundia-se o voluntarismo de muitas iniciativas populares com a estruturação de um poder popular através do qual a vanguarda comunicava às bases as tarefas que era necessário serem executadas para que os seus propósitos viessem a ter sucesso. Todos aqueles que denunciavam alguma forma de manipulação eram ofendidos e afastados.
Chegou um momento em que o PCP tinha uma estrutura em cada domínio de intervenção como as comissões de moradores, de trabalhadores, os SUV no exército, os CDR nas empresas e outras organizações que assumiam todas as formas e feitios. O que era necessário era despersonalizar, ter estruturas e não pessoas porque é mais fácil o relacionamento, são menores as objecções.

14 julho 2008

As razões do nosso esquerdismo (39)

Antes do 25 de Abril de 1974 era tido como comummente aceite que o poder era por natureza de direita. À esquerda era permitido, na opinião de algumas pessoas, dar algumas beliscaduras no poder. Mesmo muitas pessoas que admitiam o direito de revolta, não tinham por absolutamente certo que tal permitisse uma entrega do poder à esquerda.
Este estado de espírito foi vencido um pouco de modo empírico, um pouco calculistamente pela esquerda que se preocupou em trazer para o seu lado a super-estrutura depurando-a dos elementos mais recalcitrantes. De repente era como se todo o povo achasse natural o poder ser por natureza de esquerda, isto é, baseado no próprio povo.
O PREC foi quase todo vivido neste estado de espírito, que era a esquerda quem devia dirigir e caberia à direita colocar-se de resguardo para intervir quando a esquerda quisesse ser demasiado radical. A direita foi cometendo erros atrás de erros, começando por apostar num poder pessoal já perfeitamente ultrapassado e personalizado em Spínola.
A esquerda avançou de tal modo e tão facilmente que após o 11 de Março já só restava à esquerda moderada colocar o travão que a direita não tinha conseguido accionar, antes pelo contrário. Quando se colocava o poder como naturalmente de esquerda, esta luta foi tida como fratricida.
A razão é que o problema nunca se nos tinha sido colocado na realidade. Mas é na realidade que as questões podem e devem ser melhor analisadas. Na teoria sabíamos que o regime soviético nos não interessava, mas havia quem acreditasse em que, após Kroutechev, haveria um caminho de reconversão a operar ao ritmo mais apropriado, após um percurso infeliz.
A imagem que Cunhal cá tentou dar nos anos anteriores parecia apontar na mesma direcção, mas na prática o que ele nos propôs foi a reedição trágico-cómica da Revolução de Outubro. A esquerda demarcou-se, o esquerdismo recolheu em si o fel. O poder voltou a ser por natureza de direita.

13 julho 2008

As razões do nosso esquerdismo (38)

Por altura do 25 de Abril de 1974 a estrutura social portuguesa assentava essencialmente em dois padrões distintos o que levou a duas atitudes perfeitamente contraditórias da população. Cada um desses grupos sociais vivia na ignorância mútua e estava convencido da justeza das suas opções políticas, face ao passado de cada um.
No Sul rural as tendências comunistas eram fortes devido à herança vinda já dos tempos da reconquista. O Alentejo tinha sido entregue às ordens religiosas militares, depois vendido pelo Estado à burguesia lisboeta no século dezanove, mantendo sempre a mesma estrutura latifundiária. Às populações locais estava vedado o acesso à propriedade com tal dimensão.
No Sul industrial, mesmo que constituído maioritariamente por gente do Norte, havia uma grande proletarização. Se muitos daqueles que eram provenientes do Norte ainda possuíam algumas parcelas rurais nas terras de origem, estas já não constituíam qualquer referência para si, o seu universo de referências já estava desvinculado desse tipo de propriedade.
No Norte praticamente tudo continuava a ser rural. Essa ruralidade era tido por natural e quase invadia o próprio espaço das cidades. A propriedade rural estava muito distribuída mesmo que houvessem diferenças significativas. No entanto a propriedade maior não suscitava desejos de partilha. Os pequenos proprietários eram demasiados para que um número tão limitado de propriedades maiores pudesse suscitar qualquer movimento de apropriação.
No Norte, por pouco que cada um tivesse, cada qual defendia o seu. Não havia a riqueza ostensiva do Sul. Os ricos eram somente os emigrantes regressados, muitos agricultores que viviam em condições tão deficientes como os seus caseiros, alguns citadinos que tinham conseguido capitalizar o suficiente para comprar antigos conventos e casas senhoriais.
Havia no Sul uma abertura à colectivização que no Norte não tinha qualquer enraizamento.

12 julho 2008

As razões do nosso esquerdismo (37)

No Prec a desigual implantação das forças políticas no espaço nacional deu origem ao agudizar dos conflitos inter-partidários. A direita lançou uma cortina em Rio Maior para reivindicar para si o Norte. O esquerdismo fez uso da sua influência nas cinturas industriais de Lisboa e Setúbal e no Alentejo para neutralizar à partida qualquer intervenção da direita.
Ninguém exerceu o poder de exclusão, não se criaram guetos, mas na prática sabia-se dos perigos que se corriam, das ideias mais comuns que era melhor não contestar, que era quase proibido pôr em causa. Para que se despoletasse uma guerra civil era preciso haver perseguições que tornassem impossível conviver e isso na realidade não chegou a ocorrer.
Teriam havido ânimos mais exaltados, casos puramente individuais, afrontamentos à revelia das direcções partidárias, provocações para testar os sentimentos próprios e os alheios. Coacção psicológica não faltou em qualquer dos ambientes, na utilização de relacionamentos pessoais e profissionais para obter posicionamentos políticos favoráveis.
Umas pessoas tudo fizeram para que a sua vida se pudesse manter sem grandes convulsões fosse qual fosse a opção política tomada. Outros porém alteraram quase radicalmente os seus comportamentos, nem sempre numa manifestação de liberdade, muitas vezes dando expressão aos seus sentimentos mais agressivos e venais.
Muitas pessoas alteraram a sua vida normal, mas também muitas se viram obrigadas e alterar amizades, a alterar comportamentos, a alterar ritmos. A desconfiança instalou-se onde era pressuposto ela não ter assento, até mesmo na família. As atitudes provocatórias proliferaram contra uma tradição de não ultrapassagem dos limites convencionais.

11 julho 2008

As razões do nosso esquerdismo (36)

O Estado foi tão glorificado no PREC como no regime de Salazar. No PREC as populações foram colocadas tanto quanto possível a trabalhar para o Estado, fosse qual fosse a forma que este assumisse. O esquerdismo pensou que, sendo a maioria dos trabalhadores empregados do Estado, mais facilmente seria capaz de tomar o poder.
Aqui não interessava realçar o papel do Estado como empregador, mas antes associar-lhe uma série de ideias benévolas em todo contraditórias com a imagem distante embora de outro modo protectora do Estado. Essa aproximação entre o Estado e os cidadãos foi o aspecto mais realçado nesta forma particular de uma revolução que não passou da ficção.
Efectivamente para haver revolução tem que haver uma transferência decisiva do poder por um período relativamente duradouro. Se bem que tenhamos sido palco de um fenómeno peculiar como foi a greve do governo, houve a suficiente continuidade governativa durante todo o PREC para que, depois do pronunciamento inicial, nunca se tenha assistido a um verdadeiro assalto ao poder.
No PREC houve uma imensa condescendência. Nenhuma força política arriscou dar um passo demasiado largo. Só quando o esquerdismo tentou interferir com outras forças sociais não meramente políticas é que os ânimos se começaram a exaltar e os conflitos a assumir foros de violência. O esquerdismo tentava fazer passar a apropriação da propriedade alheia como foi o Caso Renascença, como mero acto de gestão.
A resposta foram os ataques às sedes do PC, actos contrários à normal tolerância demonstrado pelo povo português, mas que tiveram o apoio dos sectores mais radicais, do fundamentalismo religioso e a condescendência da maioria da população que se alheou da confrontação que se queria atear. Infelizmente em Ponte de Lima faleceria uma pessoa de bem.

10 julho 2008

As razões do nosso esquerdismo (35)

No PREC procurava-se gerir a economia de modo expedito e de forma a proporcionar emprego. Todos os problemas eram solucionados de modo rápido e da forma que se julgava mais apropriada para que se mantivesse o essencial que era a produção. Esta foi elevada de tal maneira a fim supremo que até houve a promoção de batalhas da produção.
O governo de Vasco Gonçalves, influenciado decisivamente pelo PCP, foi o mais empenhado no objectivo de obter sempre mais produção. O trabalho era glorificado como no tempo de Salazar, só que agora a questão da propriedade era relativizada. As nacionalizações iam-se fazendo sem alterar significativamente os métodos de gestão.
O trabalho era visto como um meio de redenção. Institucionalizou-se uma certa maneira de dividir por aí entre os que colaboravam e os que não colaboravam, entre os bons e os maus. Os que trabalhavam nas indústrias nacionalizadas eram vistas como os verdadeiros intérpretes da revolução.
Os que continuavam a trabalhar na iniciativa privada eram vistos com certa condescendência. Só o capital dito monopolista, porque beneficiava de certas regalias proporcionadas pelo Estado, era diabolizado. Só que as empresas sucedâneas continuaram a ter as regalias que tinham e outras que se lhe acrescentaram.
O trabalho era entendido como o elemento unificador por excelência, pela dependência que criava em relação a um patrão primordial único, o Estado, pelo seu uso como elemento de atribuição de mérito, pelo seu uso para encobrir desigualdades que surgissem no resto da labuta diária.
O trabalho contribuiu para a omnipresença do Estado. Era apresentado com o seu lado simpático e os partidos que patrocinavam esta visão eram tidos como aqueles que eram a favor da paz e da solidariedade. Mas isto era só uma das ideias feitas. Os trabalhadores eram tanto melhores quanto mais submissos, os funcionários eram melhores quanto mais zelosos.

09 julho 2008

As razões do nosso esquerdismo (34)

A consolidação programática e simultânea estruturação e projecção dos partidos políticos no pós 25 de Abril teve muitos problemas à excepção do rochedo em que Álvaro Cunhal já havia transformado o PC. Este conseguia mesmo fazer alterações à sua linha política, sem que a maioria dos seus membros disso se apercebesse ou lhe desse importância.
A maioria da população para aderir ou dar apoio a um partido só necessitava de duas ideias: Ser a favor por uma dessas ideias e ser contra por uma outra defendida por todos os outros partidos. Por esta razão também as mudanças eram relativamente fáceis quando até era difícil ter uma percepção genérica da realidade. Mudar uma só das ideias já podia implicar mudança de partido. Mudar as duas ideias implicaria uma mudança mais radical.
As opções políticas vieram a consolidar-se à volta de quatro partidos, entendendo muitas pessoas terem faltado dois para melhor representar todo o espectro político. Faltou o partido verdadeiramente socialista e o partido da direita liberal, partidos à volta de cuja formação se travaram muitas lutas.
A direita conservadora e democrata-cristã juntou-se à volta de figuras semi-comprometidas com o regime anterior e durante muito tempo fez do CDS um esteio sólido. O CDS falava de púlpito.
O PPD sofreu as dificuldades de não ser apêndice de qualquer internacional, embora o tenha querido ser, e representou os sectores mais instáveis, dos que têm mais dificuldade de chegar a uma síntese clarificadora. O PPD discutia-se permanentemente na tasca.
O PS definiu-se como barreira. Teve sempre dificuldades de afirmação. Tornou-se um partido de diálogo e não de discussão. Permanentemente vulnerável às investidas dos verdadeiramente socialistas.
O PC, o partido das amplas liberdades, definiu-se também como barreira mas nunca foi levado a sério. Defendeu sempre as últimas conquistas, estivessem elas em situação ascendente, fossem o resultado de sucessivas redefinições após o PS as ter defendido e o PC as ter negado. Os seus verdadeiros propósitos nem Cunhal os confessava.

08 julho 2008

As razões do nosso esquerdismo (33)

O PREC, de 25 de Abril de 1974 a 25 de Novembro de 1975, é um período muito característico, muito diferente de outras situações aparentemente semelhantes, porque se desenrolou uma luta pelo poder muito para além de uma luta política e em simultâneo um processo de criação e estruturação das forças políticas que a promoviam. Não havia tempo a perder.
Anteriormente era difícil sustentar qualquer imagem meritória se não se estivesse ao lado do governo. Usavam-se conceitos morais para controlar o comportamento dos outros, mesmo que fosse evidente que eles se não aplicassem aos próprios, cobertos normalmente por um véu de respeitabilidade. Esta desigualdade desagradava a qualquer um.
Os políticos que surgiram no 25 de Abril estavam no geral com uma imagem distorcida, houve quem os quisesse caracterizar somente pelos anos que tinham passado na cadeia. Com o tempo foi possível “recuperar” muita gente, arranjando-se também facilmente desculpas para uma colaboração, que era mais ou menos relativizada conforme o interesse da força interessada.
Foi um processo de lavagem de roupa suja em que nem toda a roupa foi lavada. Ministros de Salazar eram reabilitados porque tinham tentado furar o isolamento do regime, soldados eram condenados porque não tinham aceitado missões humilhantes para si. Mas no geral era tempo perdido querer demonstrar a iniquidade presente nestes julgamentos sumários.
Não era decerto tarefa fácil integrar militantes em organizações em que os novos eram em muito maior número que os velhos. Os partidos criados de raiz tiveram problemas ainda mais complexos que os outros. Por exemplo Sá Carneiro, que criou o PPD para dar corpo às suas ideias e lhe dar possibilidades de intervenção na actividade política, ver-se-ia com imensos problema para segurar e recuperar o leme do seu partido.

07 julho 2008

As razões do nosso esquerdismo (32)

Durante o período de 25 de Abril de 1974 a 25 de Novembro de 1975 tudo girou à volta do poder. As forças políticas organizaram-se como puderam para fazer frente umas às outras. Para que houvesse o mínimo de concorrentes proibia-se e interferia-se na sua gestão interna. Pretendeu-se mesmo impor modelos aceitáveis porque dóceis.
Dificilmente provamos que isto tenha sido feito de forma sistemática até porque havia da parte de quem o queria fazer uma debilidade muito grande. Havia avanços e recuos, mas nunca demonstrando qualquer sentimento de derrota. Como se sabe quem vence impõe um estilo e nesse período nunca ninguém conseguiu impor um estilo, pelo que nunca houve vencedores.
Neste aspecto se pudermos querer achar uma herança temos que constatar que houve uma certa mudança na maneira de abordarmos o tradicional “bota abaixo”, a costumeira “má-língua”, porque precisamente certas forças políticas, na ausência de um estilo próprio, fizeram uma apropriação dessa tradição adoptando a brejeirice e o desbocamento tradicionais.
Todos fizeram o que puderam para reter nas pessoas certos valores ou para fazerem a reconversão que os aproximasse mais das suas próprias teorias. As pessoas eram intimadas por uns políticos para se defenderem antes que o abismo surgisse à sua frente e por outros para se adoptarem a um futuro inevitável, mas mais glorioso que o seu passado.
O panorama político reconfigurou-se com certa rapidez e com uma inesperada solidez, de modo que a sua variação desde as primeiras eleições livres de 25 de Abril de 1975, um ano após o pronunciamento militar, é relativamente pequena e as transferências depois ocorridas podem ser facilmente explicadas.
A luta que se desenrolou após o 25 de Abril de 1975 e até 25 de Novembro de 1975 deu afinal poucos resultados, mas valha a verdade que também essas lutas não passaram na maioria dos casos de verborreia sem sentido, de ataques verbais que não eram levados a sério. Um pouco à maneira de hoje.

06 julho 2008

As razões do nosso esquerdismo (31)

Com o 25 de Abril e durante 19 meses a política crua e dura, isto é, a luta pelo poder, tomou conta do dia a dia, do noite e do dia, de todo o tempo que houvesse. Não se discutiam índices económicos, o presente era visto tão só como aquele momento transitório, umas vezes alegre outras vezes incómodo, que nos não permitia ver com discernimento o futuro.
O que se discutia na praça pública por quem quisesse participar não era muito diferente do que discutia nas sedes partidárias, nos quartéis, nas escolas. Os candidatos a políticos tinham que se apresentar aí para serem capazes de aspirar ter um futuro. Estava-se ainda numa fase pré-profissionalização. O PC estava melhor colocado para receber os estagiários.
A natureza dos factos discutidos não interessava. Falar de qualquer assunto estava ao dispor de qualquer um e de todos precisamente porque só se analisava o seu contributo para a luta pelo poder. Perdiam-se e ganhavam-se pontos, perdiam-se e ganhavam-se posições, tudo era visto com um certo desportivismo, iam-se vivendo com parcimónia alguns momentos de glória.
À medida que os momentos decisivos, aqueles que contribuem para a inclinação da balança ou a fazem tender para um dos lados, foram crescendo em número, em que a dinâmica se foi acentuando, vai-se então tornando mais necessário um momento de verdade em que se defina claramente as opções de fundo que é necessário tomar.
Os conhecimentos tidos eram o resultado de algumas leituras anteriores ao 25 de Abril e os adquiridos eram o resultado de uma discussão que não saia de algumas generalidades aceites como teoria e de uma intoxicação promovida por quem já tinha ou foi tomando posse dos órgãos de comunicação social.
Os mais precavidos foram organizando as suas forças, enquanto tudo faziam para dificultar que outros o fizessem também. A estratégia adoptada viria a ter repercussões na futura estruturação das várias forças políticas.

05 julho 2008

As razões do nosso esquerdismo (30)

A posição ambígua de Portugal durante a segunda guerra mundial, com uma inflexão final a favor dos países democráticos do ocidente, em particular da Inglaterra e dos Estados Unidos da América, contribuiu para que o regime de Salazar se aguentasse após o seu fim.
Este pequeno país não representou qualquer perigo para os maiores e esses tinham bem mais com que se preocupar no seu plano interno e na definição dos campos geo-estratégicos que se começaram a desenhar na Europa, sem grandes hipóteses de intervenção no campo alheio.
Se ninguém tinha força para impor um modelo democrático na Europa de Leste, ninguém se preocupava em impor esse modelo a Portugal e de modo semelhante à Espanha. Seja por um primeiro deixar andar porque seria caso para resolver com alguma facilidade no momento mais oportuno, seja pelo acentuar da guerra-fria o certo é que o salazarismo subsistiu.
As diferenças entre Portugal e a Europa foram porém acentuando-se, levando o Bispo do Porto a escrever em 1957 que tínhamos o “exclusivo privilégio português do mendigo, do pé-descalço, do maltrapilho, do farrapo; nem sequer o nosso triste apanágio das mais altas médias de subalimentados, de crianças enxovalhadas e exangues e de rostos pálidos (de fome de vício?).”
Em 1960 Portugal entrou na criação da EFTA pela mão inglesa. Foi a oportunidade que o regime aproveitou para um desenvolvimento económico e uma internacionalização da economia que a guerra colonial e a emigração clandestina vieram ajudar como descompressores da tensão social que se havia acumulado no quinquénio anterior.
A política não acompanhou a economia, de tal modo que a partir de fins da década de sessenta é a economia que começa a fazer as suas exigências políticas, o que também vai coincidir com o afastamento por doença de Salazar. A brigada do reumático nunca haveria porém de ceder senão pela força, com a passagem da maioria militar para o lado reformista.

04 julho 2008

As razões do nosso esquerdismo (29)

Como é natural o salazarismo teve dias mais fáceis e outros mais difíceis. Se considerarmos que a sua existência decorreu durante quarenta e cinco anos, podemos dividi-la em três períodos de quinze anos e considerar que o seu período intermédio foi o mais difícil dos três.
Podemos dizer que no primeiro período houve uma certa aceitação devida a factores internos e externos, a rejeição foi mais acentuada após a derrota das ditaduras ocidentais na Segunda Guerra Mundial e a manutenção de Portugal à margem do movimento de democracia e progresso que se desenvolveu na Europa com o apoio do plano Marshall.
Nos finais dos anos cinquenta a pressão interna era imensa para promover uma mudança e só o ambiente internacional de guerra-fria, a ausência de pressão externa que não fosse a que vinha do bloco de leste, levaram a que Salazar se aguentasse nesse balanço.
A guerra colonial e a emigração em especial para França tiveram o efeito perverso de constituírem os grandes escapes para a pressão social que se fazia sentir sobre o regime, mas que tardava a assumir um carácter político. O controlo sobre a Universidade seria uma das grandes armas de Salazar, porque lhe foi fácil utilizar a guerra para unir a população e o dinheiro dos emigrantes para criar algum desenvolvimento.
Foram tempos difíceis para a oposição ao regime, até porque dum lado e do outro, por conveniência do regime e das forças mais activas da oposição, se reduzia tudo a uma dicotomia entre salazarismo e comunismo. Quase não fazia sentido ser doutra oposição porque ninguém acreditava numa transição pacífica para a democracia.
Se não havia um apoio claro ao regime, havia uma aceitação implícita, um estado de apatia que levava os apoiantes declarados do regime a entenderem-se como pessoas respeitáveis, quando sabiam que o regime recorria a métodos desprezíveis. Essa apatia geral provocou um estado de suspeita doentio que ainda hoje existe.

03 julho 2008

As razões do nosso esquerdismo (28)

No 25 de Abril de 1974 o País tinha uma economia caracterizada pelo corporativismo. O associativismo agrícola era obrigatório. A maioria das actividades de comércio e serviços eram sujeitas à passagem dum alvará. As leis do condicionamento industrial eram utilizadas para garantir os monopólios, condicionar o acesso à propriedade, o volume de produção e os preços.
Há muito pouco tinha sido criado um regime de previdência para os rurais. Havia sindicatos de actividade “devidamente” controlados e caixas de previdência um pouco à sua imagem, mas que foram progressivamente integradas e regionalizadas. Mas havia poucas pessoas reformadas e as caixas investiam em casas económicas.
O Estado era constituído pelos órgãos que exerciam a soberania, que nesta caso se estendia ao controlo político, mas também tinha funcionários responsáveis por muitas das estruturas de suporte à economia e em especial à comunicação. Havia milhares de carteiros, cantoneiros, funcionários de grémios da lavoura e guardas florestais.
Havia um partido político, a União Nacional, depois Acção Nacional Popular, que sustentava ideologicamente o regime, mas cuja acção política era muito ténue. Dado o seu elitismo só procurava ter uma influência directa nos órgãos de poder, mas negligenciava os organismos intermédios. Deixava essa função à Legião Portuguesa e à Pide, depois DGS, não para exercerem uma influência “positiva” mas para fazer um controle pela denúncia.
Se verificarmos bem já estão aqui os elementos de cultura que ainda se notam no presente somente porque o esquerdismo os procurou preservar em seu favor. Nacionalizar foi fácil, não teve a oposição de uma opinião pública desconhecedora das suas implicações. Arranjar controladores não constituiu qualquer problema.

02 julho 2008

As razões do nosso esquerdismo (27)

No 25 de Abril havia um Partido Socialista, filho recente da social-democracia europeia e o Partido Comunista, herdeiro do maximalismo português domesticado por Álvaro Cunhal, que para isso utilizou todos os meios que estavam ao seu alcance.
O PS ainda não tinha qualquer implantação e é duvidoso que alguma vez a viesse a conseguir se não ocorresse o 25 de Abril. O PC tinha uma implantação desigual, residual nuns sítios, até demasiado ostensiva noutros. Na área universitária, onde tinha velhas raízes, vivia o drama da não coincidência da teoria operária com as origens burguesas da grande maioria.
Este facto levou à formação de vários grupos de interpretação da teoria, normalmente tendo por base as diferentes leituras importadas, mas que também cá se foram subdividindo em ramos de difícil diferenciação para quem fosse estranho ao meio. O clima era mais de suspeita do que de revolução.
Estes grupos perturbavam uma acção mais sólida do PC e excediam facilmente a sua “tolerância”. Este haveria que ter uma penetração fácil e rápida em meios operários típicos localizados nas cinturas industriais, mas nem a evidência dessa força e dessa organização conseguiu derrotar grupos, grupinhos e grupelhos que proliferavam no meio universitário.
Destes, por terem conseguido alguma implantação em meios operários mais politizados e não terem sofrido o desgaste do PC, sobreviveram a UDP e pouco mais. Será no entanto a LCI a fornecer duas décadas depois o chefe incondicional, o sacerdote supremo dessa seita neo-religiosa que é o Bloco de Esquerda.
A amálgama de valores ecologistas, libertários e de um discurso duro, sentencial, condenatório e inapelável tem dado a este grupo uma projecção desproporcionada. A direita tem ajudado sobremaneira com a sua linguagem igualmente justicialista. No seu afã de obter da população sentenças rápidas só tem conseguido alargar o espaço à esquerda e não à direita do PS, como seria seu propósito se quisesse crescer. O esquerdismo sai a ganhar.

01 julho 2008

As razões do nosso esquerdismo (26)

Um dos motivos invocados para justificar o 25 de Abril de 1974 prende-se com o desgaste e esgotamento das forças militares portugueses provocado por sucessivas comissões nas colónias. Tal não era tido por derrota, mas como uma inferioridade resultante da incapacidade física.
Como motivo, seria fútil para um militar, mas, acima de tudo, é um erro de análise a que se chega pela ignorância e provocado por quem tem interesses nisso. É mais fácil, sinal de menor cobardia, dizer-se que se é vencido pelo cansaço do que pelos inimigos, mesmo que estes só se identifiquem vagamente pelos ventos da história.
Os militares portugueses mudaram a atitude por motivos psicológicos e não físicos. É que a motivação para fazer a guerra assentava em argumentos tão frágeis que ao menor abalo baquearam. Bastou a crise petrolífera de 1973, as ameaças de boicote dos países árabes, a retirada do apoio religioso do Vaticano, uma posição mais flexível dos americanos, tudo acrescido à maior pressão nas zonas mais vulneráveis, para que o exército português hasteasse a bandeira branca da rendição.
O exército português estava fisicamente fresco, militarmente no geral seguro, faltou-lhe o domínio da previsibilidade. Após 1973 tudo passou a ser incerto, quaisquer cenários que se arquitectassem eram falíveis. O exército português não estava habituado à incerteza, tinha os pés bem assentes no chão e o olhar virado para perto, era cínico, manhoso, calculista.
No exército português havia muita gente que pensava ser ainda possível ser herói pelos dois lados da barricada. E alguns tiveram a veleidade de o querer ser, como se fosse possível sê-lo sem se ser traidor por um dos lados. Mas o outro lado da barricada estava ali tão perto, era uma tentação.

30 junho 2008

As razões do nosso esquerdismo (25)

A ideologia do PC assenta num determinismo inquestionável, na defesa de um poder forte, pelo menos enquanto não forem adoçados os instintos tidos por mais anti-sociais da natureza humana. Mas se o determinismo não age no sentido esperado nada impede que procure usar todos aqueles instintos no sentido de combater o poder instituído.
Há pois situações em que o PC não pode defender um poder forte se ele procurar levar a sociedade numa direcção diferente e não pode fazer um combate aos instintos anti-sociais se esse combate ajudar a fortalecer uma sociedade que ele rejeita.
Com o 25 de Novembro de 1975 o PC perdeu a perna que tinha no poder e passou a atacar este como causador de todas as perversões, porque a teoria comunista aceita que há períodos regressivos em que a humanidade expia as suas penas, aceita perder mas não aceita não ter razão.
Esta religiosidade laica levou o PC e os esquerdistas em geral a lutar pela destruição do Estado após o 25 de Novembro. Mas facilmente obrigados a desistir desses intentos, os esquerdistas tornaram-se em julgadores e justiceiros que proclamam a desgraça em que a humanidade se deixou cair e prometem uma amanhã encantado para todos, sem que deixem de achar ser fundamental castigar antes alguns com as labaredas do seu inferno.
Todos nos admiramos, todos os que se pretendem intelectuais, se deveriam questionar seriamente por que motivo eles, ou pelo menos alguns deles, se deixaram enredar nas teias de um sistema de raciocínio que defende a impiedade e renega qualquer espécie de laicismo. Porque não cabe aos intelectuais defender a aplicação de qualquer expiação de penas de forma abstracta e impessoal.

29 junho 2008

As razões do nosso esquerdismo (24)

Durante o PREC o PC sempre teve uma perna maior ou menor no poder. Dentro do quadro normal dos seus valores sempre defendeu o fortalecimento do Estado, do poder de Estado, dum rumo só para o Estado, do controlo e destruição das forças que se lhe opusessem. Naquela altura não importava ser o Estado herdado, desde que estivesse ao seu serviço.
Era uma política de verdade porque correspondia à ideia que as pessoas tinham, tornava claros os seus objectivos, ia a favor das ideias de segurança e previsibilidade glorificadas durante décadas e a que o PC pretendia dar seguimento. Afinal ter um legionário num lugar bem visível era sinal de como a transição podia ser pacífica.
Os intelectuais de várias tendências de antes do 25 de Abril convergiam na análise desse problema. Pensavam que não havia País melhor preparado para aceitar o comunismo de que Portugal. Isso derivava de muitos erros cometidos no passado, da implementação de um regime totalitário num País rural e atrasado como a Rússia, a que à nossa dimensão nos assemelhávamos.
Se o comunismo tinha vingado “bem” nesse País, se esse País tinha conseguido progresso científico, tecnológico e em parte industrial, dizia-se que também nós, partindo de uma base rural semelhante, com os “latifúndios” do Sul nacionalizados, criaríamos desenvolvimento sem mudar muito a estrutura da sociedade, sem grandes conflitos sociais.
Afinal os ricos eram poucos, umas famílias apenas, os pobres e resignados eram quase todos, prontos a aceitar um vergalho comunista após aquele que nos tinha sido imposto pelo fascismo. Para o Norte, tido como único problema que se colocava, minifundiário, individualista como era, mas subserviente, logo se arranjaria uma solução.

28 junho 2008

As razões do nosso esquerdismo (23)

As circunstâncias em que as pessoas formulavam as suas expectativas em 1974, 1975 ou nos dias de hoje são claramente diferentes. Isto tem que ser relembrado tanto a quem viveu esses momentos, como também aos jovens que não nem qualquer experiência de vida numa sociedade fechada.
Essas circunstâncias são externas, são mais de natureza económica política e sociológica, mas também têm uma repercussão na esfera particular, isto é psicológica. Vendo por este prisma as diferenças de comportamento de pessoas do mesmo tipo nestes dois momentos históricos são claras.
Os idealistas do PREC não defendiam a bela vida da classe média tão do agrado do Bloco de Esquerda de hoje. Os idealistas do PREC não viam a vida dos verdadeiramente ricos como o modelo a atingir por eles. Os idealistas do PREC eram comedidos nas suas expectativas, embora quisessem, como é natural, ter sempre uma vida boa, mas modesta.
Os operários do PREC não ambicionavam a bela vida da classe média de hoje. Os operários queriam não ter problemas de alimentação, ter uma casa mesmo pequena para habitar, poder dar aos filhos um pouco mais de educação do que aquela que tinham recebido. Esse tipo de operários hoje já não existe, a não ser sob a forma dos reformados que continuam a falar dum mundo definitivamente morto.
O mundo que era expectável a partir do PREC suscitou a adesão dalguns idealistas e do sector operário mas acabou por não ser suficientemente apelativo para atrair a força psicológica capaz de aguentar a sua defesa. O mundo que é expectável a partir de hoje nem sequer atrai quaisquer energias idealistas, tudo se resume a ambicionar uma vida cada vez mais bela para a classe média e lutar por chegar a ela.

27 junho 2008

As razões do nosso esquerdismo (22)

O esquerdismo actual perdeu uma das suas mais célebres, mais controversas, mas mesmo assim mais generosas bandeiras: O Internacionalismo. A esquerda clássica ficou sem farol, deixou de ter uma orientação, deixou de invocar causas internacionalistas. Esporadicamente apoia uns regimes caquécticos, resquícios dos velhos apoiados da URSS como a Coreia do Norte, Cuba, Zimbabué, outros antigos inimigos daquela, como a China, novas e velhas ditaduras anti-americanas.
O esquerdismo actual é nacionalista, fechado, incapaz de uma leitura coerente do panorama mundial, olhando somente para a barriga e a vida boa das classes médias urbanas do velho mundo. A solidariedade com o resto do mundo fica-se ao nível das ONG que mais parecem servir para dar emprego a gente desenraizada, mas não têm qualquer papel político. Os povos do terceiro mundo perderam o seu encanto de jovens miseráveis.
O esquerdismo actual abdicou de participar em fóruns internacionais, quase se diria que não tem parceiros, é um fenómeno português, sem preocupação em deixar de o ser, em se projectar. Aliás nós somos um País de copiadores, não digo que alguns não tenham alguma qualidade. A nossa política faz-se sempre com uma atraso relativo bastante grande. Em muitos aspectos e durante muitos anos o nosso paradigma era a França.
O esquerdismo militante europeu já há muito se extinguiu. Os ecologistas perderam influência com as suas contradições. O trabalho dos esquerdistas portugueses, a seguir o mesmo caminho daqueles, é para deitar fora. Qualquer dia o esquerdismo já nem a linguagem controla, ou porque caiu na vulgarização ou pela vulgarização que dela fazem os órgãos de comunicação.

26 junho 2008

As razões do nosso esquerdismo (21)

O esquerdismo actual é um estado de espírito da meia idade. Consiste numa contestação generalizada a tudo o que é alheio aos princípios libertários. A esquerda clássica não os defende mas à falta de objectivos concretos inseríveis numa estratégia de tomada de poder, vai dando cobertura a todas as manifestações de desagrado, sejam quais forem os sectores sociais que os patrocinem.
Essa esquerda clássica chama a isto agitação. Para o esquerdismo actual a agitação é um fim em si mesmo. Entendimentos são aqueles que se possam fazer com cláusulas impossíveis de concretizar. Depois anda-se a dizer toda a vida que falta cumpri-los. O esquerdismo actual está muito perto do niilismo porque não faz noção do que fazer com o poder.
A esquerda clássica sonha sempre poder ser chamada a exercer o poder no meio da anarquia. A sua ideia é, deposta a direita, colocar um colete-de-forças à esquerda. A esquerda clássica já não tem classe operária para tomar e exercer o poder. Parece agora acreditar no seu inimigo principal, o radicalismo pequeno burguês de fachada socialista, como capaz de fazer a agitação e tomar o poder.
A agitação apoia todos os movimentos contestatários por mais contraditórios que sejam. A esquerda clássica, temerosa de poderem surgir roturas que afectem o clima de agitação criado, com os centros de controlo que ainda detém, vai gerindo esses movimentos dentro dos parâmetros que mais lhe convém. Há algum carácter suicidário que ela rejeita.
Um dos problemas do esquerdismo é que embora aborde alguns problemas da juventude, não o faz de modo que esta se sinta entusiasmada a participar. Mesmo a sexualidade já há muito deixou de ser um problema só para a esquerda. Os comportamentos são cada vez mais semelhantes e essa revolução operou-se à margem da política, sendo muito mais influenciada pela ciência e pela economia.

25 junho 2008

As razões do nosso esquerdismo (20)

Muitos movimentos políticos que se propagaram facilmente nos movimentos juvenis tiveram muitas vezes a sua origem em pessoas mais velhas, com experiências diversas, mas que souberam passar a sua mensagem à juventude, de tal modo mesmo que sempre pensamos estar perante movimentos genuinamente juvenis.
O esquerdismo actual está longe de ser um movimento desse tipo. O esquerdismo actual torna os jovens prematuramente velhos. A política proposta pelo esquerdismo actual é a política dos ressabiados, dos justiceiros, daqueles que se querem vingar do povo por não terem tido a sua adesão quando viram o poder tão perto, como a 25 de Novembro de 1975.
O povo renunciou a muita intervenção, mas não renunciou à defesa de alguns princípios básicos. Quem no final perdeu foi quem muitas vezes pensou já ter obtido vitórias definitivas. Mas mesmo estes pensam ter ganho alguma coisa, não é despiciendo pensar que um dia se teve o poder tão perto da mão. A arrogância do esquerdismo actual provém desta época para muitos remota.
Embora à distância nos parecer que o PREC foi vivido a um ritmo alucinante, na verdade foi vivido às guinadas, com arranques e recuos, períodos longos de acalmia, no fundo poucos estariam preparados para em consciência terem uma opinião consistente sobre os momentos que se viviam. Deixava-se ver no que as coisas davam durante o tempo suficiente para pensar, para aglutinar forças, para organizar, para consolidar.
Se verificarmos o resultado final a 25 de Novembro de 1975, mesmo tendo terminado nesta derrota em parte consentida, houve uma mudança tal desde 25 de Abril que, se as coisas tivessem sido vividas linearmente, tê-lo-iam que ser a um ritmo vibrante. Há uma memória eufórica e intelectualizada destes tempos, mas que a juventude não compreende se não lhe for explicada honestamente, que serve de sustentáculo ao esquerdismo actual.

24 junho 2008

As razões do nosso esquerdismo (19)

Após o 25 de Abril de 1974 instituiu-se a renúncia como a primeira atitude a promover, a incentivar. A renúncia a desempenhar um papel activo na descolonização foi talvez a que teve mais implicações. Num mundo bipolar, Cunhal e o movimento comunistas não atribuíam a Portugal qualquer papel nas colónias. Cunhal sonhava só com este quinhão atlântico.
Na Rússia de 1917 houve a conversão rápida de um exército imperial num exército revolucionário, proporcionada pela paz com a Alemanha. No Portugal de 1974 o teatro de guerra estava longe do velho torrão pátria, não era fácil uma intervenção directa no exército, haveria tão só de promover a renúncia a um papel para o qual não tínhamos capacidade.
Cada colónia portuguesa se desenrascou como pode. Aquela mais rica, com forças mais ambiciosas nela interessadas foi entregue aos cubanos desempregados. Cunhal não reservou para os seus conterrâneos um papel fora das nossas fronteiras e ainda hoje assim é. Mas o facto de ter anarquizado o exército devido à descolonização que patrocinou levou a não tivesse exército a que recorrer quando quis fazer a revolução, a 25 de Novembro de 1975.
O pouco exército que resistiu permaneceu fiel às intenções mais genuinamente democráticas do 25 de Abril. Alguns espíritos não resistiram ao ritmo imposto à revolução, recuaram e avançaram fora de tempo, só porque imaginaram uma revolução que não fosse contaminada pelo carácter soviético preponderante na esquerda lusitana. Otelo, por exemplo, teve comportamentos de uma disparidade absoluta.
O povo renunciou a muita intervenção, mas não renunciou à defesa de alguns princípios básicos. Quem no final perdeu foi quem muitas vezes pensou já ter obtido vitórias definitivas. Mas mesmo estes pensam ter ganho alguma coisa, não é despiciendo pensar que um dia se teve o poder na mão. A arrogância do esquerdismo actual provém desta época para muitos remota.

Aqui pode vir a falar-se de tudo. Renegam-se trivialidades, mas tudo depende da abordagem. Que se não repise o que está por de mais mastigado pelo pensamento redondo dominante. Que se abram perspectivas é o desejo. Que se sustentem pensamentos inovadores. Em Ponte de Lima, como em todo o universo humano, nada nos pode ser estranho.

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"Big Man" 1998 (1,83 de altura) - Obra de Mueck

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