12 junho 2007

O Tribunal dos sonhos

Parti com um mais pobre do que eu. Esta expectativa de ter que “defender” uma causa abominável fiz-me renunciar a tudo: Ao futuro, a uma profissão, a uma companhia. Imponham-me uma arma, um alvo, uma vítima. Mas não tinha que renegar o amigo.
Restava-me ver em mim alguém cuja fraqueza é imanente mas que será suplantada quando conseguir espetar nos outros o olhar do mais puro ódio que me anima contra a vilania e a tirania. Esse sentimento corrosivo que nos faz vencer o medo, avançar.
Restava-me o apoio de alguém que não era mais que a minha sombra, a imagem mais esbatida ainda de um ser sem força, que mais não exige de si do que simplesmente sobreviver sem ser subserviente.
Não se imponha a Salazar, nem a Caetano ou a Américo Tomaz que provassem que estavam a defender a melhor solução para uma causa que envolvia a dignidade de um País. Eram múmias arrogantes, soberbas, de olhos fechados ao humanismo e à humildade.
Ou seriam só seres mansos sobre os quais apenas uns mal intencionados lançavam a suspeição de que seriam acompanhados de demónios terríficos para aterrorizar incautos?
As múmias guardavam bem essa sua imagem que lhes era tão familiar como outra qualquer, uma negra sombra de que a maioria dos outros só conheceriam os contornos, mas de que se procurava que ignorassem a opacidade. Eram maus sem terem é certo especial prazer na maldade.
Marcaram o seu tempo, escreveram o seu nome na história com o sangue alheio, ainda hoje são lembrados por frequentarem Academias em que só aprendiam a defender o passado, copiado a papel químico através de uma visão arquitectado com a grandiloquência de um espelho convexo.
Transmitiam uma ideia de sábios, capazes de todas as prestidigitações e de inverter o curso da história. Quanto mais decrépitos, mais respeito pareciam infundir naqueles que os viam como estátuas firmes perante si, simples transeuntes que se pensavam ser neste mundo com donos certos.
Transmitiam alguma da sua aura com um discurso empastelado e molengo, que se incrustava na ignorância de quem sabe que nada se consegue sem sacrifício e é preciso amenizá-lo. E a primeira coisa que ele atinge é a carne, só através desta chegará ao espírito.
A minha companhia era só eu e outro ainda mais pobre do que eu. A quem eu dei o sonho de que não mais seria necessário sonhar porque tudo seria mais claro que a luz. Eu não precisava mais desse sonho, da luz estática e brilhante, que o futuro haveria que se enfrentar de peito feito à ventania.
Nunca trocaria o sonho da luz fixa pelo da luz errante, mas é este que prolifera. É o grande sonho da multiplicação dos sonhos. Sonho próprio dos seres transfigurados, mutantes, que se não sentem vivos se não tiverem em quem aplicar o seu ódio, seja dirigido aos indefesos colonizados, seja aos que se viriam a opor ao seu novo sonho de dirigir o mundo baseados em falácias.
Mas os sonhos andam por aí, tantas são as falsas luzes, herdam-se, sem que sequer se possa dizer que têm donos, que alguém se responsabiliza por eles e que a História tenha hipóteses de os julgar. Há paternidades atribuídas aos sonhos que não são aceitáveis, não têm qualquer razão de existir. E não há julgamentos sem réus.
Há boas e seguras razões para que não só a realidade, mas também os sonhos, em especial esses vagos e vagabundos, sejam levados a juízo, sem arguidos, sem acusados e sem que a pena tenha que ser aceite por alguém.

Sem comentários:

Aqui pode vir a falar-se de tudo. Renegam-se trivialidades, mas tudo depende da abordagem. Que se não repise o que está por de mais mastigado pelo pensamento redondo dominante. Que se abram perspectivas é o desejo. Que se sustentem pensamentos inovadores. Em Ponte de Lima, como em todo o universo humano, nada nos pode ser estranho.

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"Big Man" 1998 (1,83 de altura) - Obra de Mueck

"Big Man" 1998 (1,83 de altura) - Obra de Mueck
O mais perfeito retrato da solidão humana