19 julho 2007

Um testemunho comunista fundamental

Italianos, franceses, espanhóis e portugueses tem andado juntos quanto se trata de ideias políticas, uns mais avançados que outros, com cambiantes mas com muitos traços comuns. Um deles é que todos tiveram, em diferentes ocasiões históricas, partidos comunistas com significativa influência na opinião pública e até nos destinos dos respectivos países.
Nós temos aprendido essencialmente pelo exemplo desses três outros partidos comunistas, sendo o português o mais hermético e fechado dos quatro. Enfim Zita Seabra fala-nos do caso português, com as suas particularidades derivadas das condições histórico-geográficas e políticas próprias. Fala-nos, dado o seu longo e preenchido percurso, da organização, dos métodos usados, dos fins perseguidos.
O partido comunista teve em Portugal um percurso que a partir de certa altura se pode relacionar com o de Zita Seabra e de muitos outros da seguinte forma: Há um período mítico, um revolucionário, um ideológico/ constitucional, um decadente e a actual situação em que a divisão deu origem a um partido moribunda e uma mulher revigorada.
Tendo entrado na primeira fase, ainda com Salazar vivo, participou na construção da seguinte, principalmente desde que assumiu a direcção da U.E.C. e que terminaria no 25 de Novembro de 1975, empenhou-se na terceira com desilusão, na quarta até à sua exclusão para que a quinta não ocorresse.
Pelo seu significativo trabalho de organização Cunhal promoveu-a ao posto hierárquico mais alto a seguir ao seu. Saiu na fase decadente estupefacta com o dito “socialismo real” mas tentando salvar o que fosse possível salvar, salvando a face dos bem-intencionados.
Zita Seabra revela factos que demonstram o cinismo da maioria dos dirigentes, mesmo quando eles se agarram a Álvaro Cunhal como o único que lhes podia salvar a face, escondendo as suas intenções, recuando o mínimo possível e negando o passado tão só porque já o não conseguem repetir.
Mas, se o relato destes factos dá consistência à história, Zita Seabra não se serve deles para fundamentar a sua tese que não é de atacar o carácter das pessoas antes sim de atribuir todas as culpas à política proposta, ao centralismo democrático e à ditadura do proletariado, ao sistema assim criado.
É um livro benéfico para todos porque há tiques que nós carregamos do nosso passado, só possíveis de germinar neste passado e de que nos temos que livrar. Cunhal copiou tiques de Salazar porque tinha a ideia que era o único capaz de se lhe equiparar. Aqueles que ainda hoje fazem elogios a Cunhal, sacralizaram-no e têm a ideia de terem herdado algum bocado do seu espírito.
Só nos libertaremos desta nódoa com a verdade nua e crua que Zita Seabra teve a coragem de contribuir para desvendar. Se muitos mais falassem seria mais fácil mas inacreditavelmente muitos calaram-se e limitaram-se a mudar para o que consideravam as margens do comunismo: O P.S. ou o B.E.
Porque a margem P.S. é desde a Fonte Luminosa radicalmente diferente, o silêncio dos que para lá foram só se justifica pela vergonha de se sentirem enganados. Zita Seabra afirma-o e confirma-o, que nunca foi enganada. Por isso, quando foi expulsa, nunca o aceitou, ao contrário dos dissidentes que nunca lhe perdoaram a frontalidade de ter enfrentado Álvaro Cunhal enquanto lhe deram essa possibilidade.
Os outros foram enganados e saíram cabisbaixos. Ela foi traída pelo seu próprio intelecto e saiu de cara levantada. Como ela, muitos viram no P.C. a única forma de desestabilizar o sistema salazarista e lavaram a peito o seu projecto na medida em que se foram integrando e identificando com o projecto perverso personalizado em Álvaro Cunhal.
Só a qualidade do empenho de cada um levou a que uns vissem mais cedo a natureza do sistema que existia na U.R.S.S. e que cá se queria montar. A saída deste empenho teve no caso de Zita Seabra implicações na saúde, mesmo de natureza psico-somática, mudou-lhe a idiossincrasia.
Ela adquiriu a lucidez de quem não atribui culpas às pessoas mas sim aos sistemas que carregam em si diferentes doses de perversidade. Reordenou as suas ideias à volta de valores humanos que devem prevalecer sobre todas as ideologias. A estas nunca se devia deixar que assumam carácter absoluto. Se pensarmos que os mortos do comunismo merecem o mesmo tratamento que as vítimas do nazismo estamos no caminho certo.
As pessoas também não gostam de vidas completas porque elas comportam necessariamente reviravoltas. Gostam que elas sejam o mais linear possível, para bem as perceberem e à sua maneira. Zita viveu e continua a viver o que há no seu tempo, que de linear nada tem e por isso não agradará a muitos, como se as mudanças fossem em si um crime.
O intelecto de Zita Seabra assumiu diferentes perspectivas intelectuais em diferentes momentos da sua vida, mas sabemos agora o que então desconhecíamos: O intelecto atraiçoa-nos quando gera sentimentos perversos de que não nos “queremos” aperceber. Quando passamos a percebê-los não praticamos qualquer crime.
Cunhal teve sempre essa vida linear, pelo menos no aspecto público, porque antes quis morrer com o seu erro a dar o braço a torcer. Contrariamente a Cunhal, Zita Seabra apercebeu-se do erro e quis rectificar o que de mal tinha feito na sua vida. Foi a tempo de o fazer integralmente: Os mortos, os injustiçados do comunismo ajudaram-na.

Sem comentários:

Aqui pode vir a falar-se de tudo. Renegam-se trivialidades, mas tudo depende da abordagem. Que se não repise o que está por de mais mastigado pelo pensamento redondo dominante. Que se abram perspectivas é o desejo. Que se sustentem pensamentos inovadores. Em Ponte de Lima, como em todo o universo humano, nada nos pode ser estranho.

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"Big Man" 1998 (1,83 de altura) - Obra de Mueck

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